Grande Plano Manchete25 de Abril | Como era Macau no ano da Revolução dos Cravos Andreia Sofia Silva - 25 Abr 202425 Abr 2024 Em Macau, a notícia do derrube do Estado Novo tardou e a censura apenas foi abolida em Maio. A vida no território era bem mais simples do que é hoje: grande parte da comunidade chinesa vivia em barracas, a primeira ponte para a Taipa estava quase acabada, os telefones eram pouco mais de 10 mil e os japoneses dominavam as nacionalidades dos turistas Chegaram tarde a Macau as notícias sobre o 25 de Abril de 1974. Os primeiros sinais de que algo se passava na então metrópole foram chegando através de canais de informação estrangeiros, nomeadamente a BBC de Hong Kong, pois em Macau a imprensa portuguesa era sujeita a censura. Por ironia do destino, o 25 de Abril de 1974 aconteceu a uma quinta-feira, tal como hoje. E nesse dia os jornais locais de língua portuguesa noticiaram a espuma dos dias, com artigos que hoje nos permitem percepcionar a vida provinciana que então se vivia no pequeno território com administração portuguesa. O Clarim, à data bissemanário, noticiou em grande destaque a ida do Governador Nobre de Carvalho à Assembleia Legislativa (AL), uma notícia semelhante também publicada no diário Notícias de Macau. A actualidade informativa não variava muito de publicação para publicação e era comum publicarem-se comunicados ou discursos na íntegra, espalhados nas várias páginas do jornal. Nobre de Carvalho foi à AL apresentar o panorama geral do território nomeadamente a “situação financeira, análise da conjuntura económica, actividade bancária, turismo, problema habitacional, segurança pública, actividade municipal, plano de fomento, telecomunicações e energia eléctrica”. Há 50 anos, as autoridades repensavam a cobrança de impostos à população devido à “necessidade de actualização”. Propunha-se, assim a actualização do imposto de consumo pela importação de veículos automóveis, a revisão das taxas de sisa “que incidem sobre a transmissão de imobiliários por título oneroso e do regime de isenção da contribuição predial e outros benefícios fiscais de que gozam os prédios edificados de novo, melhorados ou ampliados”, além de se propor a actualização das “taxas da tabela das profissões liberais e técnicas que servem de base à liquidação do imposto profissional dessas classes; actualização da tabela geral do imposto de selo”. Nobre de Carvalho dizia esperar que a actividade bancária se tornasse “cada vez mais um instrumento impulsionador do progresso de Macau, promovendo o seu desenvolvimento económico através da melhoria dos mercados monetário e financeiro”. 480 mil turistas em 1973 A economia local, pautada já pelo jogo, sector fabril e comércio de ouro, conheceu pujança quando foi dada nova concessão de jogo à Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM) de Stanley Ho, em 1963. Desde aí, foi sempre a crescer. O Governador admitia perante o hemiciclo que essa “actualidade” tornava-se “dia a dia mais importante dentro do quadrante da economia da província”. Os números nada anteviam, contudo, o boom turístico que o território iria conhecer 50 anos depois. Em 1973, Macau recebeu 480 mil turistas, “obtendo-se uma taxa de crescimento de 20 por cento”, descreveu o Governador. Em 1972, os turistas tinham sido apenas 380 mil. À época, a China permanecia um mistério para a maioria dos portugueses e macaenses, com fronteiras quase intransponíveis, tendo em conta que Portugal não reconhecia o regime comunista da República Popular da China. Assim, se hoje os turistas chineses dominam o sector, à época dominavam os japoneses, que tinham atingido a fasquia dos 250 mil em 1973. Seguiam-se “os cidadãos britânicos, com 105 mil, e americanos, com 37 mil”, graças à influência da vizinha Hong Kong. A população era na sua maioria chinesa, vivendo em barracas na zona norte e trabalhando sobretudo em fábricas e empregos pouco qualificados. Nobre de Carvalho tinha, assim, em mãos um grave problema habitacional. “O Governo continua a dar a atenção que é possível a este sério problema que afecta o sector economicamente mais débil da população – na sua maioria a residir em construções provisórias, de madeira (…).” Os portugueses ocupavam as habituais posições de funcionários públicos em comissão de serviço ou no atendimento ao público, tal como os macaenses, que iam traduzindo ou estabelecendo pontes entre dois mundos distintos. Casas com mais telefones Há 50 anos, ir a Taipa e Coloane era sinónimo de férias para os adultos ou de tempos livres em colónias de férias para os mais novos. Ia-se de barco e a viagem demorava o seu tempo. A vida fazia-se sobretudo na península, sendo que os telefones domésticos, numa população que não ia além das 300 mil pessoas, eram ainda poucos. O Governador Nobre de Carvalho disse na AL esperar que até final de 1974 fosse implementada a segunda fase do desenvolvimento de telecomunicações, esperando-se “o pleno funcionamento de cerca de 10.500 telefones, ou seja, o dobro dos existentes em Maio de 1973”. Em 1974, terminavam as obras na primeira ponte do território. A construção da ligação Macau-Taipa, que ficaria conhecida como ponte Nobre de Carvalho, tinha sido adjudicada em 1969 por 14 milhões de patacas, valor que passou a 20 milhões em 1971 devido a um “contrato adicional”, explicou o Governador no hemiciclo. Macau, tal como os restantes territórios ultramarinos portugueses, tinha o orçamento dependente dos Planos de Fomento do Governo português. De frisar que no plano para 1974 já constavam projectos de obras públicas ou infra-estruturas como a construção de estradas na Taipa e Coloane, instalações portuárias em Ka-Hó, “resgate de terrenos” ou mesmo o desenvolvimento do “plano geral do aeroporto”. Spínola na capa As notícias do 25 de Abril saíram nas notícias locais com um dia de atraso. A imprensa estava ainda sujeita à censura, mas depressa a Comissão de Censura à Imprensa e a sua fiscalização se tornaram num pró-forma. A 27 de Abril de 1974 a Gazeta Macaense colocava em manchete “A hora presente da Nação”, com o rosto de Spínola na capa e a informação de que havia sido criada a Junta de Salvação Nacional. Desta fez parte, além de Spínola e outras personalidades, um antigo Governador de Macau, Jaime Silvério Marques. Também o Notícias de Macau escreveu, no mesmo dia, o seguinte: “A data do 25 de Abril de 1974 assinala um novo capítulo na História de Portugal”. Acrescentava-se que “O general António de Spínola foi proclamado ‘CHEFE DE PORTUGAL NOVO'”. O Clarim escreveu, a 28 de Abril, em primeira página, sobre “A nova ordem política em Portugal”, publicando na íntegra as primeiras palavras do Movimento das Forças Armadas. Além dos órgãos estrangeiros terem noticiado o 25 de Abril, os boatos de que algo tinha acontecido em Lisboa chegaram pela via do cantor Rui Mascarenhas, que estava em Macau para participar no festival “Abril em Portugal”, que decorreu no restaurante “Portas do Sol”, no Hotel Lisboa, entre os dias 13 e 28 de Abril. Nas páginas dos jornais portugueses ostentava-se o anúncio do espectáculo com o “Príncipe do Fado” de Portugal que acabou por falar, na rádio, sobre os novos acontecimentos. Do espectáculo fazia ainda parte o “dinâmico grupo” intitulado “Portugal a Cantar”. Em entrevista à rádio TSF, Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses, recordou que soube da revolução pelo seu pai, o escritor Henrique de Senna Fernandes. Com 13 anos, recorda-se de a professora ter dito que “ia mudar tudo em Portugal”. O também advogado recordou que a comunidade chinesa passou ao lado deste acontecimento, pois, para a elite chinesa, imperava meramente a continuidade da estabilidade social e política em prol dos negócios. A censura à comunicação social terminou oficialmente a 3 de Maio depois de os directores dos jornais terem reunido com Lages Ribeiro, chefe de gabinete de Nobre de Carvalho e último presidente da Comissão de Censura à Imprensa. Constituiu-se depois uma comissão ad-hoc. Da revolução saíram novos partidos políticos, nomeadamente o CDM – Centro Democrático de Macau e a ADIM – Associação da Defesa da Instrução dos Macaenses. Macau mudou de Governador logo no ano da revolução e começou a trabalhar em prol do Estatuto Orgânico, implementado em 1976 em consonância com a nova Constituição portuguesa. Dele saiu a composição de deputados que hoje existe na Assembleia Legislativa e as garantias de autonomia administrativa e financeira em relação a Lisboa. Um novo futuro começava a traçar-se.