商君書 – O Livro de Lorde Shang

Tradução de Rui Cascais

Assim damos início à publicação, pela primeira vez em língua portuguesa, do Livro de Lorde Shang (商君書 Shāng jūn shū), que data do século III ACE, tendo sido escrito, ou compilado, pelo Lorde Shang Yang (também referido no texto pelo seu apelido Gonsung), que serviu como ministro do Duque Xiao, Regente de Qin, durante o período dos Estados Combatentes.

Shang Yang foi um estadista e pensador chinês que desempenhou um papel crucial na reorganização do Estado de Qin, que acabou por conduzir à unificação do império chinês pela dinastia Qin. Acreditava na importância do poder para manter a integridade de um Estado, dando ênfase a um grande exército e a celeiros cheios. Shang Yang implementou reformas como a substituição das divisões feudais por governadores nomeados a nível central, o serviço militar obrigatório, um novo sistema de divisão de terras e de tributação e uma administração uniforme da lei. O seu foco na centralização do poder, no fortalecimento do exército e na promoção da igualdade perante a lei deixou um legado duradouro na história chinesa e influenciou o desenvolvimento do pensamento político no país. As suas reformas suscitaram a oposição dos nobres, o que levou à sua queda e eventual execução em 338 a.C.

O seu livro é uma obra fundacional da tradição Legista (sendo anterior ao Han Feizi) e de claro pendor anti-confucionista. Nela, a posição do soberano, ou regente, é tida pela primeira vez como fundamental para o governo directo do mundo e da sociedade. A versão portuguesa aqui apresentada segue a tradução de J. J. L. Duyvendak (1928) e a de Yuri Pines (2017), em paralelo com o texto original chinês.

更法 A Reforma da Lei

1

孝公平畫,公孫鞅、甘龍、杜摯三大夫御於君,慮世事之變,討正法之本,求使民之道。

O Duque Xiao, o Regente, expôs a sua política. Os Três Grandes Oficiais, Shang [Gongsun] Yang, Gan Long e Du Zhi, estavam presentes junto do Regente. Com os seus pensamentos consagrados às vicissitudes das coisas do mundo, discutiram os princípios destinados a rectificar a lei, buscando uma forma de conduzir o povo.

2

君曰:「代立不忘社稷,君之道也;錯法務明主長,臣之行也。今吾欲變法以治,更禮以教百姓,恐天下之議我也。」

O Regente disse: “Não se esqueçam, no momento da sua sucessão, dos espíritos tutelares do solo e dos cereais, pois essa é a via de um soberano; dar forma às leis e certificar-se de que um soberano inteligente venha a reinar, essas são as tarefas de um ministro. É agora minha intenção alterar as leis, de forma a estabelecer uma governação ordeira, e reformar os ritos de modo a educar o povo, mas temo que o mundo me critique.”

3

公孫鞅曰:「臣聞之,『疑行無成,疑事無功,』君亟定變法之慮,殆無顧天下之議之也。且夫有高人之行者,固見負於世;有獨知之慮者,必見訾於民。語曰:『愚者闇於成事,知者見於未萌。民不可與慮始,而可與樂成。』郭偃之法曰:『論至德者,不和於俗;成大功者,不謀於眾。』法者,所以愛民也;禮者,所以便事也。是以聖人苟可以強國,不法其故;苟可以利民,不循其禮。」

Shang Yang disse: “Ouvi dizer que aquele que hesita agir nada consegue e que aquele que hesita nos problemas [da governação] não obtém mérito. Possa o Regente ser rápido a decidir sobre a alteração das leis, talvez sem prestar grande atenção às críticas do mundo. Além disso, aquele que se conduz a si mesmo como uma pessoa exemplar é, desde logo, detestado pelo mundo e aquele que pensa conhecer de modo independente é decerto desprezado pelo mundo. Há um dizer que afirma: ‘Os estúpidos nem sequer compreendem um problema mesmo depois deste estar resolvido, os sábios antecipam-no mesmo antes de surgir’. Não devemos deixar o povo ter conhecimento das origens de um problema, mas devemos deixá-lo regozijar com a sua resolução. A lei de Guo Yan diz: ‘Aqueles que se preocupam com as mais altas virtudes não estão em harmonia com as ideias do povo; aqueles que conseguem concretizar grandes trabalhos não se aconselham junto da turba’. A lei é uma expressão de amor pelo povo; os ritos são uma forma de fazer as coisas decorrer com suavidade. Como tal, se isso o fizer capaz de reforçar um estado, um sábio não segue os modelos da antiguidade, nem adere a ritos estabelecidos se isso o fizer capaz de beneficiar o povo.”

O Duque Xiao exprimiu o seu assentimento.

4

甘龍曰:「不然。臣聞之,聖人不易民而教,知者不變法而治。因民而教者,不勞而功成;據法而治者,吏習而民安。今若變法,不循秦國之故,更禮以教民,臣恐天下之議君,願孰察之。」

Porém, Gan Long disse: “Nada disso, pois ouvi dizer que ‘Um sage ensina sem mudar o povo e uma pessoa sábia consegue governar bem sem alterar as leis’. Se ensinarmos segundo o espírito do povo, o sucesso será obtido sem esforço; se governarmos aderindo à lei, os oficiais serão peritos nela e o povo viverá tranquilamente. Contudo, se o Regente alterar as leis sem seguir os antigos costumes do estado Qin, reformando os ritos de modo a educar o povo, temo que o império vos critique e desejo apenas que possais reflectir sobre isto profundamente.”

5

公孫鞅曰:「子之所言,世俗之言也。夫常人安於故習,學者溺於所聞。此兩者所以居官守法,非所與論於法之外也。三代不同禮而王,五霸不同法而霸,故知者作法,而愚者制焉;賢者更禮,而不肖者拘焉。拘禮之人,不足與言事;制法之人,不足與論變。君無疑矣。」

Shang Yang retorquiu: “Aquilo que o senhor defende é o ponto de vista do homem comum. De facto, o povo comum rege-se por velhas práticas e os estudantes estão imersos no estudo daquilo que lhes chega da antiguidade. Estes dois tipos de pessoa são suficientes para ocupar cargos e manter a lei, mas não são do género de poder participar numa discussão que vá além da lei. As Três Dinastias atingiram a supremacia graças a diferentes ritos e os cinco Lordes Protectores conseguiram oferecer a sua protecção graças a diferentes leis.

Assim, uma pessoa sábia cria leis, mas uma pessoa insensata é por elas controlada; uma pessoa talentosa reforma os ritos, mas uma pessoa imprestável é por eles escravizado. Não vale a pena discutir com uma pessoa escravizada pelos ritos; não vale a pena discutir reformas com uma pessoa controlada pelas leis. Possa o Regente não hesitar.”

6

杜摯曰:「臣聞之,利不百,不變法;功不十,不易器。臣聞法古無過,循禮無邪。君其圖之。」

Du Zhi disse: “A menos que a vantagem seja a cêntupla, não se deve reformar a lei; a menos que o benefício seja de dez vezes, não se deve alterar um instrumento. Ouvi dizer que ao seguir a antiguidade como exemplo é impossível errar, e que ao seguir ritos estabelecidos é impossível cometer ofensas. Possa o Regente ter esse fito.”

7

公孫鞅曰:「前世不同教,何古之法?帝王不相復,何禮之循?伏羲神農教而不誅,黃帝堯舜誅而不怒,及至文武,各當時而立法,因事而制禮。禮法以時而定,制令各順其宜,兵甲器備各便其用。臣故曰:『治世不一道,便國不必法古。』湯武之王也,不循古而興;殷夏之滅也,不易禮而亡。然則反古者未可必非,循禮者未足多是也。君無疑矣。」

8

Shang Yang retorquiu: “As gerações anteriores não seguiram todas as mesmas doutrinas, que antiguidade deveríamos então imitar? Os imperadores e reis não se copiaram uns aos outros, que ritos deveríamos então seguir? Fu Xi e Shennong ensinaram, mas não puniram; Huangdi, Yao e Shun puniram, mas sem ira; Wen Wang e Wu Wang ambos estabeleceram leis segundo aquilo que era oportuno e regularam os ritos segundo exigências de ordem prática; dado ritos e leis estarem fixos segundo o que era oportuno, todos os regulamentos e ordens eram expedientes e as armas, armaduras, utensílios e equipamento eram todos práticos. Por isso digo: ‘Há mais de uma forma de governar o mundo e não é necessário imitar a antiguidade de modo a tomar as medidas apropriadas para o estado’. Tang e Wu conseguiram atingir a supremacia sem seguirem a antiguidade, e quanto à queda de Yin e Xia, a sua ruína ocorreu sem que os ritos tivessem sido alterados. Como tal, aqueles que agiram contra a antiguidade não merecem necessariamente ser culpados, nem aqueles que seguiram ritos estabelecidos merecem grande elogio. Possa o Regente não hesitar.”

9

孝公曰:「善。吾聞窮巷多怪,曲學多辨。愚者之笑,智者哀焉;狂夫之樂,賢者喪焉。拘世以議,寡人不之疑矣。」

O Duque Xiao exclamou: “Excelente! Ouvi dizer que nas zonas pobres da província muita coisa é considerada estranha e que nas escolas de aldeia há muita discussão. Aquilo de que os insensatos riem faz chorar os sábios; a alegria de um louco é o desgosto de uma pessoa talentosa. Nos nossos planos, deveríamos ser guiados pelas necessidades do tempo – disto não duvido.”

10

於是遂出墾草令。

Em resultado disto, o Regente deu ordens resolutas para cultivar as terras ao abandono.

Subscrever
Notifique-me de
guest
1 Comentário
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
Antônio Monteiro da Silva Neto
Antônio Monteiro da Silva Neto
20 Abr 2024 23:49

Simplesmente maravilhoso. Gosto muito dessa coluna. Saudações de Aracaju, Estado de Sergipe, BRASIL!