Virgínia Trigo, académica e ex-presidente do IFT: “Não se pode hostilizar a China”

A académica do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa Virgínia Trigo estuda há anos a internacionalização de empresas chinesas desde que a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” se apresentou ao mundo. A também presidente do antigo IFT de Macau destaca a aposta actual na área das energias, em contraste com a “dispersão” das empresas portuguesas ao entrar na China

 

Como olha hoje para o processo de internacionalização das empresas chinesas, tendo em conta os diversos estudos que tem desenvolvido nos últimos anos?

Nos últimos 20 anos, o processo de internacionalização das empresas chinesas tem passado por várias fases. Tenho estudado esta questão há cerca de 15 anos graças ao trabalho de orientação de teses de doutoramento de alunos chineses, muitas delas ligadas a processos de internacionalização de empresas. Relativamente à iniciativa “Faixa e Rota”, houve uma primeira vaga de estímulos conduzida por empresas estatais chinesas na área das infra-estruturas. Uma vez terminada a enorme tarefa de construção dessas infra-estruturas na China, a capacidade instalada gerou um excesso de oferta, sendo a internacionalização o caminho natural para a absorver. A iniciativa Faixa e Rota ofereceu uma oportunidade para a absorção desse excesso. Nessa fase, o processo de internacionalização foi feito sobretudo pelas grandes empresas de construção, mas em fases posteriores já outro tipo de empresas, e também as pequenas e médias, aproveitaram o caminho aberto para se internacionalizar. Actualmente, assistimos a uma continuidade do interesse na Faixa e Rota, bem como um interesse cada vez maior em investimentos em economias desenvolvidas nas áreas da tecnologia e inovação. Tal acontece graças a fusões e aquisições, com destaque para as áreas da inteligência artificial, energias renováveis e biotecnologia.

Relativamente a Portugal, como descreve hoje a internacionalização e os investimentos das empresas chinesas? Mudaram-se os ramos de actuação, com maior aposta nas energias renováveis e telecomunicações, por exemplo?

O interesse por Portugal acontece já nesta última fase e sim, recai sobretudo nas energias renováveis, como a produção de baterias ou automóveis eléctricos, e outros sectores que, em determinado momento, representaram grandes oportunidades para as empresas chinesas. Uma das razões para as empresas chinesas terem investido em Portugal foi porque, em determinada altura, a compra constituiu uma grande oportunidade: Portugal tinha necessidade de vender e a China tinha disponibilidade financeira para comprar. Essas aquisições por oportunidade, porque na altura foram um bom negócio, podem ser vendidas em qualquer altura, como já está a acontecer com alguns investimentos que a Fosun fez em Portugal.

Que análise faz à internacionalização das empresas portuguesas na China? Continua a haver desigualdade e grandes dificuldades no acesso a este mercado?

Essa internacionalização é dispersa, pouco consistente e as empresas não se ajudam umas às outras. Em regra, ficamos muito entusiasmados com um sucesso e muito desanimados quando este se transforma em insucesso. A China é um mercado difícil que parece fácil. O que quero dizer é que nos podemos deixar encantar muito facilmente com a simpatia, com a grandeza dos números, com as recepções e por promessas que nos fazem e apostar no curto prazo. Na China não se faz nada sem uma rede de relações e a construção de confiança é o mais inestimável dos valores. Não há “negócios da China” e o retorno só acontece no longo prazo. Uma área que me diz particularmente respeito é a internacionalização da educação e o ISCTE tem dois doutoramentos na China oficialmente reconhecidos pelo Ministério da Educação do país e que funcionam com muito êxito já há 15 anos. Mas esses programas baseiam-se em redes de relações muito antigas construídas ao longo de mais de 30 anos e que jamais foram descuradas. Posso dizer-lhe que durante o período da covid-19 alguns programas sino-estrangeiros terminaram, mas foi uma excelente oportunidade para nos afirmarmos. Nos três anos em que a crise durou estive de quarentena 126 dias, é óbvio que me custou, mas os nossos alunos tiveram sempre um apoio presencial do ISCTE. Isso foi muito valorizado e não será esquecido.

Como encara a posição da Comissão Europeia em termos de fiscalização do investimento estrangeiro, onde se incluem os investimentos chineses?

A Comissão Europeia pretende uma maior reciprocidade, isto é, um acesso mais fácil ao mercado chinês por parte das empresas europeias, advogando a necessidade de maior equilíbrio nas relações. É uma posição razoável. Durante a covid-19 a Europa confrontou-se com a quebra das cadeias de abastecimento e com excessiva dependência de mercados terceiros. Bens essenciais como os ventiladores eram disputados pelos países ocidentais nos aeroportos chineses, mas não se pode, nem se deve, ignorar nem hostilizar a China. Um país que reocupa o seu lugar (central) na história é demasiado importante para ser hostilizado e é fundamental aprender a lidar com ele aceitando esta nova realidade através do diálogo e da cooperação activa, para se conseguir um ambiente de investimento mais estável e previsível.

“As armadilhas” da internacionalização

Um dos últimos estudos desenvolvidos por Virgínia Trigo sobre o posicionamento das empresas chinesas nos mercados intitula-se “State and private-led Clusters of Innovation in China” [Clusters de inovação liderados pelo Estado e pelo sector privado de Inovação na China], e foi desenvolvido em parceria com Chen Peng. O estudo foi publicado em livro com o nome “Clusters of Innovation in the Age of Disruption” em 2022.

Nesta obra, destaca-se o facto de, em 40 anos reforma e abertura do país, se ter acumulado “uma grande quantidade de tecnologia, capacidade, experiência, fundos e toda uma cadeia industrial que inclui a construção de infra-estruturas completas e avançadas”, sem esquecer outras “realizações em comunicações, portos, pontes, estradas, caminhos-de-ferro e túneis”. Contudo, e à semelhança do que Virgínia Trigo destacou nesta entrevista, este cenário gerou um “excesso de capacidade e uma enorme procura de recursos”. Estavam, assim, criadas condições para “uma forte necessidade de internacionalização”, das empresas, que levou “não só à ascensão das empresas multinacionais emergentes da China (das quais a Huawei e a China Communications Construction Company são apenas dois exemplos), mas também à construção do ambicioso projecto” da iniciativa Faixa e Rota.

Este capítulo fala ainda da cidade de Shenzhen como “um lugar para novas fontes de inovação e crescimento empresarial”, por ter “uma abordagem de baixo para cima, orgânica e não por projecto”. Tal faz com que se reúnam na cidade “muitos talentos vindos de todas as partes da China e do estrangeiro, atraídos pelo sucesso de grandes gigantes nacionais como a Tencent e a Huawei”. Shenzhen apresenta ainda como atractivo “políticas favoráveis às empresas e uma forte cadeia industrial local”.

Entre a cultura e a economia

O estudo de Virgínia Trigo e Chen Peng diz ainda que o actual caminho traçado pela iniciativa “Faixa e Rota” está “cheio de armadilhas”, pois a China tem de “abrir a procura a novos motores de crescimento, uma vez que precisa de transferir os seus excedentes de alta qualidade para o mundo”. Contudo, “ao fazê-lo, as empresas multinacionais têm de ultrapassar incertezas políticas, culturais, económicas e de outro tipo que caracterizam a maioria dos países ao longo das rotas” integrantes da iniciativa de Xi Jinping.

Nesse processo, “empresas multinacionais dos países desenvolvidos ainda detêm a posição dominante no sistema global de redes empresariais”, pois “as suas capacidades de integração de recursos globais e de controlar o sistema de rede global continuam a afectar todos os padrões de negócio”.

Os autores consideram que, anos depois do início de “Uma Faixa, Uma Rota”, “temos ainda de avaliar qual o balanço entre o Estado e as empresas privadas presente na economia chinesa”.

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