A senhora – 4

Entre os dias e os meses e os anos do início nesta terra, já então em tudo diferente, o homem então jovem, parece intuir o gesto de uma curva. Suave e lentamente a crescer do muito difícil, do sem nada para começar, crescendo lento para uma forma que se insinuava, a desenhar-se neste secreto elaborar com um fim preciso. Amealhar para eles, segurança e sentido, leveza e fé. Não aquela de antepassados abandonados em altares para lá de uma imensa e densa fronteira. Mas uma fé igual à dos pais que secretamente lhe fizeram chegar uma pequena quantia de dinheiro guardado e restos secretos e poucos de joias de família. Segredo perigoso para acompanhar o filho em fuga para melhor. Com o que puderam e sem hesitar perdê-lo.
Queria pensar que a mulher que um dia, porque o tempo corre, iria passar a ser a mulher muito velha, aquela cujo elemento de distinção em tempos fora apenas a curvatura imutável de uma nuca, e um colorido fresco no rosto e esquecendo depois a expressão mutante do olhar, não ia descurar os frutos e figuras recortadas em papéis de prosperidade, fatos e iguarias umas mais reais do que outras, na mesma e imutável irrealidade de venerar. No altar doméstico abandonado. Os mortos. Os mortos queridos ou os mortos que a família uniu antes de o ser numa conjuntura de encadeado para sempre. Que a mulher não iria deixar de acender as velas dos antepassados. Mas estavam longe. Antepassados com país, mas longe nos seus altares domésticos. Não fora já longínqua a forma de serem mortos na vida dos vivos. Pensa. O homem muito velho vindo dessa China imensa e mutável em que um dia não reconheceu a sua terra e a si.

Fugido. Para emendar um sonho. E trabalhar para ganhar o que lhe pudesse trazer o princípio do sonho até ali, de novo a rapariga jovem de tranças, faces frescas e queixo decidido. E o filho pela mão.
Noites dramáticas de agonia, expectativa e frio a entranhar-se na alma, encharcada de temor como os corpos no canal. Quando o dinheiro finalmente era suficiente para virem. E levados de volta. E voltando, quando muito tempo depois, o dinheiro voltava a chegar. E levados de volta. E voltando. E levados de volta e um dia não voltaram mais. Não queriam. Ao longo de anos, bilhetes espaçados a combinar a vida. Ao ritmo desesperante e lento em que as economias se somavam até à quantia necessária. E no dia em que pararam de chegar e eles não voltaram a tentar, em que foi dito que ela não voltaria mais, com o filho pela mão a arriscar nas águas do canal vidas e o dilema do entusiasmo patriótico, o homem envelheceu numa noite. Não começou a envelhecer como muitas vezes um pouco de cada vez a cada perda, a cada desilusão e a cada dor mais persistente. Simplesmente envelheceu. Tudo de uma vez. Deitado de lado sem dormir, com uma cinta de aço a tolher-lhe o peito e o pensamento vazio. Na mão o bilhete escrito e definitivo e ao lado o sonho que morreu. Em sombra.


Sempre mentalmente se referiu a ela simplesmente como a senhora. Talvez por respeito, seguramente por distância. Aquela a partir da qual a observara e aquela que nela intuía. A da estranheza e do hiato curvo, que como uma auréola a circundava. Por isso estava bem. Assim sem nome nem história de vida. Personagem única. No primeiro olhar, algo dele voou para aquela estrangeira, desligada e leve, errática a palmilhar ruas para trás e para diante, num cenário estranho, como um símbolo. Uma figura plana, assim vista de fora, em sombra e estranha. Talvez adivinhasse nela a incapacidade de prender. Pessoas em laços. Recortou-a em materiais delicados transparentes à luz. E nos seus movimentos, projectou a alma à procura de definição e sentido, naquele ser desligado e eco. Como espelho em que finalmente visse estacionar o reflexo de toda aquela densa impressão do que o definira desde sempre. Como neste território, que durantes décadas custou a acolhê-lo. Resistência sua. Quase desistência.
E no entanto, muitos anos passaram em que acalentou a ilusão de que a ligação ao território iria crescer. O peso da sombra no chão, a identidade nele. Com o cartão. E que um dia se sentiria em casa, no presente. Não na expectativa nem na memória. O território a crescer na razão inversa de si. A terra a nascer imparável e ruidosa numa modernidade predadora e o corpo a implodir sem comida forte nem remédio. O lugar a tornar-se irreconhecível como ele, mas na razão directa de si. Contudo, foi ao olhar de frente essa estranheza a ganhar território em si, um dia no centro da cidade, que entendeu que daí crescera afinal e distraidamente uma vida. Um outro. Como se largada uma pele sem préstimo e ressequida dos anos, outra por debaixo em espera, aparecesse afinal fresca, idosa e nova. Com uma memória de perda do lugar em metamorfose e quando perda significa posse.

Ela olha-o e vê o homem velho muito velho estrangeiro em si. Sem mais pontes de comunicação do que aquelas. Tecidas entre varas finas. E a senhora, sem se saber no teatro de uma peça desconhecida, sentiu o aroma inconfundível a bolor e deitou-se naquele calor abafado e húmido. Esperando que a chuva não invadisse a mala velha de cabedal. E num momento ou outro dormir. Se estivesse escrito.
A senhora cuja única distinção para lá de ser contrastante numa rua onde todos sabiam para onde ir, era não se saber parte de uma história desconhecida, em que o papel desempenhado não era o seu, mas o dele, ou nem isso, apenas uma figuração muda da ideia de aprisionamento na exterioridade inevitável daquele lugar. Sentiu de novo um odor enjoativo aos bolores de várias idades, uma ligeira e incomodativa sensação de sufocar e virou-se ou a isso foi obrigada pela posição dos painéis guardados, para dormir naquele calor abafado e húmido. A repetir para dentro como um mantra, que a chuva não entrasse a pouco e pouco pela tampa da mala um pouco fora de forma. Se não estivesse escrito.
(continua…)

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