Festival Fringe | Estará Macau afectado pela cultura do cancelamento?

O cancelamento de um espectáculo do Festival Fringe será uma manifestação da chamada cultura do cancelamento em Macau? Duas personalidades ligadas ao mundo das artes locais acreditam que sim. Ao HM, a porta-voz do grupo responsável pela performance cancelada não escondeu a profunda tristeza com decisão do Instituto Cultural

 

 

“Feito pela Beleza”, da companhia Utopia da Miss Bondy, estava agendado para subir ao palco do Festival Fringe entre 23 a 25 de Janeiro, mas acabou cancelado com a presidente do Instituto Cultural (IC), Deland Leong Wai Man, a explicar que o conteúdo do espectáculo era “divergente” face ao que foi apresentado na fase de candidatura ao festival.

O espectáculo burlesco preparado pela Utopia da Miss Bondy foi cancelado depois de ter sido exibido um vídeo com “drag queens” nas redes sociais. Importa frisar que o espectáculo sempre teve classificação para maiores de 18 anos e, na sua apresentação, lia-se que continha “linguagem obscena e nudez que poderia ofender a sensibilidade de alguns espectadores”. Além disso, a mesma peça entrou no cartaz do Festival de Teatro de Shekou, que se realizou entre Outubro e Novembro do ano passado na cidade vizinha de Shenzhen.

Perante este caso, importa perguntar se Macau está a enfrentar a chamada cultura do cancelamento sempre que ocorre um evento ou espectáculo susceptível de incomodar os espectadores mais sugestionáveis ou que aborde temas sensíveis não necessariamente políticos, mas que roçam os limites da moralidade. Sarah Sun, porta-voz do grupo Utopia da Miss Bondy, acredita que sim. “Para mim, é muito triste concordar com este ponto de vista”, começou por dizer ao HM.

“Depois do nosso cancelamento, muitas pessoas descobriram que houve um espectáculo com drag queens no Fringe de 2001. O espírito do Fringe é ser lúdico, ousado e experimental, e o IC continuou a pedir para mudarmos as roupas e exigiu contenção para encaixarmos no que eles queriam, no que pensam que a arte deve ser. E depois simplesmente cancelaram o nosso espectáculo porque não obedecemos”, frisou.

Segundo Sarah Sun, o IC exigiu mudança dos vestidos ou a cor dos collants, para disfarçar as pernas dos actores. “Muitas das coisas que nos pedem para mudar não são realmente importantes. Ou talvez o IC ache que as drag queens não são adequadas para se vestir?”, questionou.

A responsável acredita que o cancelamento do “Feito pela Beleza” deve constituir “um ponto de partida para as pessoas terem consciência de que a nossa liberdade de expressão criativa está a ser reduzida”. “Devido ao sistema de financiamento, o IC parece pensar que tem o poder absoluto de decidir que espectáculos, que formas de arte, que artistas podem ser vistos”, disse ainda.

O realizador Vincent Hoi também defende que o mundo artístico está a enfrentar limitações à liberdade de expressão. “O objectivo da arte deve ser estimular as pessoas a pensar com diferentes ângulos e encorajá-las a ter um pensamento independente. O cancelamento do evento significa que o Governo não quer que as pessoas tenham um pensamento independente e apenas diz às pessoas que tudo o que está relacionado com o [universo] dos drag queens é errado e que é algo que não pode ser visto pelos habitantes de Macau, mesmo para um público com mais de 18 anos. Mas será que os drag queens são algo feio e errado? Se são bons ou maus, bonitos ou feios, cabe às pessoas decidir”, defendeu ao HM.

Um futuro sombrio

Vincent Hoi não tem dúvidas de que “o futuro das artes vai piorar cada vez mais”, tendo em conta que os funcionários públicos, bem como “o Chefe do Executivo e a secretária para os Assuntos Sociais e Cultura não compreendem as artes e também não se preocupam com elas”.

As críticas do realizador incidem também sobre a percepção do que deve ser a oferta cultural do território e o tipo de espectáculos que se enquadram na ideia de uma “cidade mundial de turismo e lazer” e cidade multicultural. “Mesmo que o Governo queria que Macau se torne numa ‘Cidade das Artes do Espectáculo’, os seus conceitos quanto a isso talvez se limitem a convidar artistas como Jacky Cheung, Eason Chan ou a banda Seventeen para virem a Macau. Isso faz com que, nas suas cabeças, Macau seja uma cidade das artes do espectáculo. O Governo parece entender que o objectivo das artes é apenas promover o território como uma cidade turística.”

Para Vincent Hoi, este cenário “é mau para as associações culturais locais”, considerando “difícil fazer com que os [dirigentes] tenham uma mente mais aberta”. O HM contactou ainda o deputado José Pereira Coutinho para obter uma reacção, que disse “não dominar este assunto”.

Kevin Chio, da companhia teatral Rolling Puppet, declarou tratar-se de uma “abordagem muito conservadora” por parte do IC tendo em conta a ideia “de uma cena artística mais aberta e diversificada” associada ao festival Fringe. “O IC alegou ter descoberto discrepâncias entre o plano do espectáculo e a produção real, mas pelas declarações que li da produção, não creio que fosse possível existirem discrepâncias porque o espectáculo já tinha sido apresentado em Shenzhen. O IC podia ter solicitado um vídeo de todo o espectáculo. Que tipo de drag queens estavam à espera?”, questionou.

O artista recorda que a decisão do IC foi tornada pública depois de ter sido transmitido um vídeo num autocarro. “Quando o IC se sente pressionado tende a empurrar os artistas para um canto ao invés de permanecer parado ou neutro. Esta acção do IC só prova que há uma linha vermelha para as artes, mas não sabemos onde está. Seleccionaram o espectáculo, conheciam o seu conteúdo, mas quando se gerou algum ruído por parte do público, suspenderam-no. Ironicamente, e mesmo com todo o ‘ruído’ e queixas que gerou, o concerto de K-Pop no Estádio de Macau [da banda Seventeen], decorreu como planeado. Por isso digam-nos onde está essa linha vermelha”, frisou.

Ao jornal Ponto Final, Sarah Sun esclareceu que aquando da apresentação da candidatura do “Feito pela Beleza” foi referido que o conteúdo se relacionava com “drag queens”, tendo sido sempre apresentadas fotografias dos figurinos e detalhes do guião.

Exemplos anteriores

Não foi a primeira vez que o mundo das artes se vê assombrado pelo posicionamento que o Governo adopta em relação ao conteúdo dos espectáculos. Recorde-se que, no passado mês de Outubro, o IC enviou emails às associações sobre alegadas críticas feitas a um espectáculo destinado ao público infantil. O IC alertava para o dever de “evitar incluir nas criações [artísticas] elementos impróprios [considerados] indecentes, [como] a violência, pornografia, obscenidade, jogos de azar, insinuações ou violação dos direitos de outras pessoas”, “a fim de evitar o cancelamento do subsídio”.

Várias associações assinaram uma carta de contestação como resposta, mostrando-se “muito preocupadas com este aviso” feito com base em queixas anónimas. Na carta, mencionaram ainda a existência da Comissão de Classificação Etária de Espectáculos e Exibições Públicas de Filmes Realizados em Macau, “que visa proteger o público de conteúdos impróprios e distinguir se uma obra é ou não adequada para ser vista [por pessoas de determinadas faixas etárias]”. “Será ainda necessário impor uma restrição generalizada às obras que não contenham nenhum dos elementos inadequados acima referidos? Sugerimos que se respeite a existência das comissões para que o público possa escolher, por si, quais as obras adequadas para assistir”.

Os signatários da carta afirmaram ainda temer uma “aplicação demasiado rigorosa” das restrições, com potencial “impacto negativo” no sector das artes e espectáculos, bem como no cinema e meio audiovisual.

Também em Maio, aquando da entrada em vigor da nova lei relativa à defesa da segurança do Estado, o IC anunciou novas regras para a submissão de projectos cinematográficos e televisivos a financiamento do Fundo de Desenvolvimento da Cultura, que passam pela apresentação de conteúdos a concurso que respeitem a segurança nacional e as crenças locais.

Na altura, Tracy Choi desvalorizou o risco de controlo dos conteúdos. “O Governo disse que não vai controlar os conteúdos [submetidos], mas claro que alguns dos projectos podem não estar de acordo [com as regras]. Mais do que a questão da lei [da segurança nacional] em si, penso que não haverá um grande controlo, especialmente porque o fundo permite que empresas de fora concorram ao financiamento e teremos uma maior de conteúdos sobre a área do entretenimento.”

Nota de edição: Artigo corrigido face à versão impressa com a inclusão da opinião de Kevin Chio.

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Cheang Siu Chau
Cheang Siu Chau
23 Fev 2024 17:47

Não vou comentar diretamente sobre o assunto deste artigo, porque acho que há uma coisa mais importante do que isso para lembrarmos em primeiro lugar. Como adoro a arte e a cultura e, o mais importante, tenho consideração e respeito pela sociedade em que vivo, devo dizer-lhe o seguinte: A arte é uma parte essencial da expressão humana e tem sido assim ao longo da história. Abrange diversas formas de expressão, como música, dança, artes visuais e literatura, entre outras. Desempenha um papel fundamental na formação e preservação da cultura de uma sociedade. Na verdade, arte e cultura estão tão… Ler mais »

Cheang Siu Chau
Cheang Siu Chau
23 Fev 2024 23:56

Além disso, como foi mencionado acima sobre os efeitos daquele enorme concerto sobre os nossos residentes, procuro analisar os seus prós e contras, e de facto o que realmente precisamos. Se falamos do impacto ou dos benefícios que os espetáculos e concertos podem trazer ao turismo, estamos a falar do número de turistas que viriam ver. Mas, o mais importante, o que mais nos preocupa é a qualidade dos mesmos, pelo que falamos do poder de gasto dos turistas que cuidamos. Muitos deles levavam meia dúzia de pasteis de nata, ou uma dúzia dos famosos “biscoitos de mulher”, como lembrança… Ler mais »