Emigração | Os portugueses que chegaram quando muitos estavam a sair

João Veloso e Inês Lemos são o exemplo de portugueses que decidiram emigrar para Macau quando muitos estavam de saída. Mas só o conseguiram fazer no ano passado devido às restrições em vigor. Em plena pandemia, apostaram no desconhecido e numa nova vida deixando de lado as notícias negativas sobre a covid. Amélia António diz ser cedo para se falar de uma eventual renovação da comunidade com o fim das restrições

 

A normalidade começou a instalar-se na Europa a partir de meados de 2021. Os verões começaram a ser vividos por multidões descontraídas e a máscara foi, aos poucos, perdendo importância. Em Macau, pelo contrário, até há pouco tempo, as palavras surto, confinamento, máscara e distanciamento físico, faziam parte do léxico do quotidiano do território, fazendo com que muitos portugueses, há mais de dois anos sem verem as famílias, deixassem o território de vez.

Inês Lemos, designer, e João Veloso, director do departamento de português da Universidade de Macau (UM), contrariaram essa tendência. Ambos sabiam que iam passar pela quarentena de 14 dias, pelo tempo interminável de espera no Aeroporto Internacional de Macau à chegada sem perceberem muito bem porquê, engalfinhados numa burocracia de testes em catadupa e papeladas sem fim.

Ainda assim, por questões pessoais e profissionais, apostaram em emigrar para Macau e hoje não estão arrependidos. “Cheguei em Junho de 2022, na altura do surto e na antevéspera do semi- confinamento”, contou ao HM João Veloso, que, no entanto, nunca pensou em desistir do novo projecto profissional por causa das restrições.

A UM abriu o concurso público para a escolha de um novo director do departamento de português em finais de 2020, mas, na altura, não era permitida a entrada de estrangeiros em Macau. Dessa forma, João Veloso só pôde pisar o solo da RAEM no ano passado.

“Quando concorri sabia qual era a situação, mas tinha esperança de que, nos meses seguintes, as coisas melhorassem. Quando recebi instruções para vir, a meio do surto, confesso que fiquei um bocadinho receoso. Sou um optimista por natureza e um bocadinho lírico, mas sabia que a situação não seria fácil.”

Para João Veloso, vir para Macau e passar por todas as restrições da covid foi como um “regresso ao passado”, pois já em Portugal tinha vivido dois confinamentos e cumprido regras como o uso da máscara e a realização de testes.

“Passei por alguns momentos de desânimo depois de chegar a Macau, mas antes não. No embate com a realidade tive momentos de alguma ansiedade, na altura do isolamento. Cheguei a ter receio de que o território fechasse novamente.”

Ainda assim, como optimista que é, João Veloso faz “um balanço positivo” da vinda para Macau. “Nunca me arrependi de ter vindo. Acho que ter emigrado nesta altura é uma espécie de prova de resistência pessoal. Passei por alguns momentos de desânimo e angústia, mas graças ao apoio que recebi de pessoas aqui em Macau, e ao ver algum espírito de mobilização, faço um balanço positivo. Fico contente por ver que as medidas restritivas estão a ser abandonadas, o que oferece outras perspectivas de contactos e de viagem”, frisou.

Bruscamente no Verão passado

No caso de Inês Lemos, foi o coração que a trouxe a Macau. Chegou no Verão do ano passado, assim que as autoridades decretaram que todos os portadores de passaporte português podiam entrar na RAEM. Antes disso, tinha apresentado um pedido de acesso à residência pela via do casamento que foi recusado.

Inês recorda-se da quarentena de 14 dias que teve de cumprir e para a qual até já estava preparada. Mas as cerca de dez horas de espera no aeroporto, à chegada, foi, para si, “o pior”. “Foi muito sofrido, estive sentada numa sala fria depois de uma viagem longa à espera de coisas. Custou bastante.”

Inês Lemos nunca baixou os braços e, ao contrário da maior parte das pessoas que já desesperava com as restrições há bastante tempo, tinha o espírito mais leve para lutar. “Tinha perfeita noção do que estava a acontecer, mas eu estava super feliz porque ia finalmente ter com o meu companheiro. Foi o concretizar de um desejo passados mais de dois anos em que estivemos afastados. Apanhei com o confinamento mal cheguei a Macau, mas vinha com um ânimo diferente das pessoas que já cá estavam”, lembrou.

Sem ter termo de comparação em relação ao que Macau era antes da pandemia, Inês Lemos sentiu as “ruas vazias”. “Percebi pelos comentários de todos que antes era bem diferente, sempre com muita agitação e filas para tudo. Ouvi falar de Macau pelas lembranças e memórias antes da covid. Agora noto que, de facto, há muito mais movimento de pessoas que não são de Macau.”

Neste momento, Inês frequenta a pós-graduação em Educação da Universidade de São José (USJ) e prepara-se para fazer o estágio que depois lhe vai permitir dar aulas. A designer, a trabalhar remotamente para Portugal, pretende, por isso, entrar no mercado laboral local em breve.

Dados que importam

Divulgado esta quarta-feira pelo Governo português, o Relatório da Emigração relativo ao ano de 2021 dá conta do menor número de sempre de entradas de portugueses em Macau. Apenas 18 o fizeram desde 2000, sendo que esses eram residentes da RAEM, uma vez que não era permitida a entrada de estrangeiros.

Amélia António, presidente da Casa de Portugal em Macau (CPM), revela estar mais preocupada com os números dos portugueses que saíram do que daqueles que entraram. E esses são mais difíceis de quantificar.

“Se não podiam entrar estrangeiros, só os residentes é que podiam entrar, até seria normal que os números fossem zero. Vivia-se uma situação complicada e depois tínhamos a própria impossibilidade legal. Obrigaria a uma reflexão maior se conseguíssemos ter os números de quem saiu efectivamente, porque há as pessoas que saíram para férias ou outras razões, mas que não o fizeram de forma definitiva.”

Amélia António traça vários cenários relativamente à saída de cidadãos portugueses. “Quem saiu com mais idade, ou reformado, ou a acompanhar filhos, faz parte de um movimento mais ou menos normal. Foi acelerado, talvez, pela força das circunstâncias, pelo facto de não se poder ver as famílias. Mas pessoas mais novas que saíram, que estavam a trabalhar, com a vida mais ou menos organizada, isso é que é mais assustador para mim, porque essas pessoas não vão voltar para Macau, a não ser que as suas vidas em Portugal não corram como o planeado.”

Nova comunidade?

Sem restrições, será que a comunidade portuguesa pode agora renascer e reinventar-se? Amélia António acredita que, a curto prazo, será difícil chegarem novas pessoas que não tenham contactos prévios com o território. “Pessoas que nunca estiveram em Macau e que venham de novo serão muito poucas, tendo em conta toda a propaganda negativa relativamente às condições de vida e de saúde. Não será fácil isso acontecer. Tal demorará muito tempo e depende da orientação que for dada ao território, caso haja interesse efectivo de que Macau continue a ter uma imagem multicultural e de abertura ao exterior, com a presença de quadros qualificados portugueses e da sua mais-valia.”

Para a dirigente associativa, não basta abrir as fronteiras. “Estes anos foram desmobilizadores e criaram uma imagem pouco atractiva de Macau. Veremos como é que a situação vai evoluir, porque vai depender de coisas que neste momento não conseguimos saber, como é o caso das questões laborais, das operadoras de jogo, em termos de necessidade de mão-de-obra. Haverá uma ligação com as dificuldades que poderão aumentar, ou não, na Europa. Há muita coisa desconhecida ainda. É o momento ainda muito difícil para fazer previsões.”

Para João Veloso os portugueses ainda fazem falta em alguns sectores, como é o caso da Função Pública ou na área da docência. “Neste momento começa a deixar de haver razões para as pessoas terem os receios ou reservas que tinham até agora. Se isso se vai traduzir numa vinda de mais portugueses, não sei. Há lugar para os portugueses ainda pois há certos serviços que precisam deles. As condições de vida e de entrada em Macau tendem a melhorar. Há motivos para a comunidade portuguesa voltar a aumentar. Há lugares para professores de português e funcionários públicos, por exemplo.”

Também Inês Lemos acredita que este “cantinho” na Ásia terá sempre espaço para os cidadãos portugueses. “Há sempre espaço para nos reinventarmos e fazermos coisas diferentes. Acredito que Macau ainda tem muitas coisas agradáveis e boas para oferecer aos portugueses, há uma ligação histórica e temos este cantinho na Ásia que é uma ponte para tantos sítios. Macau continua a ser um bom sítio para se apostar, mesmo com a distância.”

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