Cemitérios pacificados e cadáveres adiados

UMA boa espreguiçadela, após o despertar e logo seguida do duche matinal, pode render um dia descontraído, se não começarmos por esbarrar em notícias como esta: a de que, impudicamente, os partidos neonazis europeus – por exemplo, a mais lepenizada extrema-direita francesa e a revanchista peste papista polaca – lideram as sondagens, tal como acontece na Áustria, na Alemanha e na Suécia, crescendo também alegremente em Portugal.

Estas forças de má catadura vão conquistar entre 183 e 197 dos 720 lugares na próxima legislatura do Parlamento Europeu (PE), 25% do total de representações nacionais, ultrapassando os 25% necessários para escolha dos titulares dos cargos de topo nas instituições comunitárias e para a aprovação de legislação comunitária.

É isto que se pode ver embasbacadamente num estudo do European Centre on Foreign Relations que, no dizer especialista nestes assuntos Kevin Cunningham, participante no referido estudo, já se antevê:

“A composição do PE vai deslocar-se acentuadamente para a direita nas eleições de Junho, o que poderá ter implicações significativas para a capacidade da Comissão Europeia.”

A horda neonazi, sob o título bem-sonante Identidade e Democracia deverá ocupar a terceira maior bancada do PE.

Dá para ir à janela e gritar “aqui d’el rei!”

O que deu a um professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa chamado Nuno Severiano Teixeira, que foi ministro da Administração Interna, com Guterres, e ministro e da Defesa Nacional, com Sócrates, e é agora director do Instituto Português de Relações Internacionais, foi fingir que Netanyahu é um pacato israelita sem pecados demonstráveis e que “na Rússia, Putin concorre, em Março, para o seu quinto mandato e não enfrentará qualquer oposição real. Todos os opositores possíveis estão presos, exilados ou envenenados. A vitória é certa e a coroação imperial também.”

Não espantaria Nuno Severiano, pelos vistos, que alguns milhares de cadáveres fossem encontrados entre os destroços da Faixa de Gaza, nas valas comuns do Vietname, nos calabouços de Guantánamo ou entre as ruínas iraquianas.

Mesmo assim, não me entra no bestunto a ideia de que as rapinas neocoloniais de alguns membros da NATO, bem como a perda da soberania nacional pelos 27 sócios da União Europeia, chegue para justificar o comportamento dos nazificados judeus de Israel e que estes, sob a compreensão ou mesmo a protecção de certas democracias liberais, possam impune e livremente proceder ao genocídio que prosseguem na Faixa de Gaza e na Palestina Ocupada, indo ao ponto de destruir cemitérios e deixar cadáveres a descoberto entre os destroços.

Segundo a televisão norte-americana, a americaníssima CNN bem nossa conhecida, pelo menos 16 cemitérios da Faixa de Gaza foram completamente arrasados pelo Exército israelita, o que, aliás, classifica como “uma prática sistemática”.

Por outro lado, já em Dezembro, “The New York Times” reportava imagens de satélite que mostram imagens de 6 cemitérios da Faixa de Gaza muito danificados em consequência de uma acção militar sionista.

Cadáveres adiados

FARIA hoje 470 anos um infeliz rei misógino e sedento de glória que se chamava Sebastião e, ao contrário do que Fernando Pessoa escreveu 400 anos mais tarde, foi um cadáver adiado por pouco mais de uma década, mas nunca procriou.

No torvelinho da lendas e mitos que entram na nossa história, teremos ficado com a memória embotada, a pontos de nem repararmos no belo erro do poeta da “Mensagem”?

Confirme-se, então:

Louco, sim, louco, porque quis grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza;

Por isso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nela ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?

Sebastião I de Portugal e Algarves, que encabeçou uma cruzada para Alcácer Quibir no dia 4 de agosto de 1578 e foi tema de lendas e narrativas, apelidado como “o Desejado”, “o Encoberto” e “o Adormecido”, ascendeu ao trono muito jovem, com apenas 3 anos, após a morte de seu avô, o Rei D. João III, sendo por isso, instaurada em Lisboa uma regência durante a sua menoridade, primeiro pela sua avó, a Rainha Catarina da Áustria e, depois, pelo seu tio-avô o cardeal D. Henrique, o filho de rei que foi o primeiro grande chefe da Inquisição em Portugal.

Muitas foram as hipóteses geradas pela morte do tresloucado Sebastiãozinho, considerando algumas que o efeminado rei cruzado não morreu durante a batalha de Alcácer Quibir, visto haver sido raptado, pouco depois do desembarque e levado para essa cidade mourisca e providencial.

O que é certo é que ele começou a governar com apenas 17 anos e logo se lançou na sua aventura africana, assim fornecendo a diversos tipos de portugueses a inebriante e salvífica crença de que haveria de regressar à pátria numa manhã de nevoeiro como a que tenho neste momento à beira-Tejo.

Mas lendas, crenças e mistificações patrioteiras é o que mais abunda nos programas escolares de antigamente e mesmo na cabeça de muitos professores em exercício.

A própria cidade de Lisboa ainda é geralmente apregoada como uma conquista do fogoso príncipe vimaranense filho da Tareja condessa portucalense, depois de uma conversa tida algures com um Cristo enorme rodeado de anjos, num dos vários Ouriques que havia a norte e a sul do Tejo.

É pena que assim continuemos, já que algo idêntico se passa com a velhíssima cidade de Lisboa, sendo certo que até nas universidades e academias é geral a ignorância sobre a criação fenícia da Alis Ubo (Enseada Amena), topónimo que calcorreou um milenar percurso fonético até estanciar com a designação atual.

Só que teve de passar pelo nome romano de Felicitas Julia Olisipo, pelo árabe Al-ashbuna e pelo Lyxbone, como aparece na carta intitulada “De repugnatione lyxbonensi”, assinada pelo erudito cruzado britânico Osberno, um eclesiástico amante de lanças e espadas, e se encontra no acervo na Universidade de Cambridge, tal como outra, mais sucinta, subscrita por Arnulfo, também cruzado no cerco, conquista e saque de Lisboa.

Em 1147, quando os predadores, a caminho de novas rapinas, seguiram para oriente, entregaram a Afonso Henriques, o catolicíssimo rei minhoto, filho de uma autoproclamada rainha e de um conde francês, uma urbe formidavelmente evoluída com cerca de 20 mil residentes. Muitos lhe chamavam então qualquer coisa parecida com Lisboa, designação que frequentes vezes aparece nos documentos na forma abreviada de Lx.

Felizmente, é já vasta e muito saudável a historiografia actual em que me foi possível escabichar a matéria deste meu descontraído apontamento.

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