Constelação Natália no ano de 2023

Aparentemente deixei de escrever aqui, mas não. O tempo verbal é outro: não tenho escrito. Estive, na realidade, muito ocupada com a Natália Correia. Foi um ano em que vivi com o fantasma dela e nem sempre foi fácil. Encenei uma peça, fiz um filme, montei uma instalação-performance, uma conferência e uma outra instalação. Como disse: foi muita coisa. Agora posso dar notícia de tudo. Os meus dedos estão libertos para pensar enquanto deixam letras e mais letras que não têm outro sentido senão o de se escreverem para além de mim. Mas comigo. Poderia dizer que o meu coração está feliz com este horizonte, mas não. Foi uma carga muito pesada e ressinto-me muito agora: cansaço, ilusões e desilusões, ainda mal refeita do trabalho. Mas, voltemos a essa mulher que colocou acima de qualquer suspeita o epítome da liberdade a favor do vento e a desfavor de uma vida simples. Sim, a vida nunca seria simples desde que a mãe lhe dera a comer a cultura clássica e o gosto pela música em Colheres de Prata, título da peça que encenei. A vida seria, ao fim e ao cabo, sublinhada pela alegria feroz dos que têm dificuldade em vivê-la como os demais. Ser diferente é uma factura que custa a pagar e traz o riso da morte para muito perto. A morte anda a rondar, a rondar, para na realidade amparar a queda no vazio que espreita em cada derrota que não se aceita. Natália não se deixava abater, por isso o ensaio cinematográfico que fiz sobre ela se chamou A Mulher que Morreu de Pé.

Natália acompanhou o aparecimento e a queda do Estado Novo. O advento e a queda de uma revolução, segundo as suas aspirações, com o 25 de Abril de 1974. Foi a principal crítica do processo democrático, então instalado em Portugal, nunca deixando e ser um das pessoas mais irreverentes e mais democráticas de Portugal.

Mas comecemos do princípio. Era uma vez uma menina pequenina chamada Natália, enfeitada de pérolas, hortênsias e mar, que sempre se colocou ao lado dos que que revolucionam os seus actos – os verdadeiros revolucionários. Por isso entrevistou Norton de Matos, Fez parte da campanha de Humberto Delgado, defendeu desde sempre, e sempre até morrer, a liberdade de expressão dos escritores, artistas, intelectuais. Era uma mulher de coragem. Uma Guerreira amazónica. Dava o peito às balas: assim a descreveram os meus actores num casting poético que integra o filme e a peça Colheres de Prata. Mas, acrescentaram era uma mulher solitária e frágil que a maior parte dos amigos abandonou, porque ela, com efeito, também os abandonou. Creio que os hipócritas. Não lhe serviam no pé.

Ela era uma multipétala de talentos – demasiado grande para os demais que a envolviam. Cantava, representava, escrevia romances, teatro, poesia, e tinha uma feroz habilidade como comentadora social e política, revelada, entre outros temas, na defesa dos direitos da mulher que cedo afastou do femininismo dominado pelo americanismo, atribuindo-lhe um nome diferente: femininismo, porque defendia o que de feminino todos podemos ter – homens e mulheres. E que essa sensibilidade era adequada ao que mais importante havia de defender como deputada – a cultura e a forma como essa mesma cultura modelava mentalidades e determinava a forma de fazer política, e a política ela mesma.

Foi a sua vida e a forma como a viveu que mais marcas deixou nos que dela ousam falar. Fait-divers, anedotas, instrumentalidades menores do seu carácter. Claro que uma vida também é isso, como a de Cesariny, que tanto admirava: gente de língua afiada, punho cerrado. No entanto foram as palavras escritas na sua poesia, criando a constelação Natália numa geometria de ligações improváveis entre o barroco, o surrealismo e o romantismo, que faz dela um génio maior, ou um pequeno deus que podemos ter à mão na estante da nossa casa. A figuralidade que transita da procura de um ponto cândido onde a poesia mais não fosse que poesia, e a escrita o que eleva o homem de si próprio – caminho que repousa numa antiquíssima idade da terra em que a espiritualidade pagã e descrucificada a mimava ainda, a tornava possível, potenciando – ao fim e ao cabo, os seus arrufos com o mundo. Com Vitorino Nemésio sonhou o independentismo do seu arquipélago, correspondendo às aspirações de alguns, mas felizmente falhando o seu propósito.

Natália construi uma persona dramática que ainda hoje fantasmagoriza a cultura portuguesa. Não se pode viver bem com ela, mas ignorá-la será muito pior. – Não se pode conter e abarcar tudo o que esta mulher fez, pensou, quis, mas ignorar a demanda deste desejo ainda pior será. A verdade é que a sua grande vontade de ser reconhecida na sua Ilha-Mãe nunca se chegou a concretizar. Mesmo quando tso apontava para obter o reconhecimento numa exposição sobre a sua obra em São Miguel, a morte roubou a essa açoreana o momento de ser resgatada pelo seu arquipélago, que considerava o último reduto da nacionalidade portuguesa. O seu querido Espírito Santo não a ajudou. Morreu a escassos dias de concretizar este sonho que o Governo Regional levou tempo demais a concretizar.

De tudo o que sinto, o que sinto mais pena é de não a ter conhecido. Não ter estado presente nas tertúlias antifascistas da sua casa na Rodrigues Sampaio, e no seu Botequim da liberdade. Natália, apesar do que dela dizem, foi antifascista toda a vida, antes de depois do 25 de Abril, movimento a que esteve ligada desde o primeiro momento. O medo de se abater de novo sobre o país o estigma da ditadura levou-a a fazer um movimento ao centro, à social democracia. Quem a pode criticar? Eu não. Aceito que o tenha feito. Foi mais um gesto de liberdade ao arrepio da moda do tempo, que desenha um percurso político peculiar: aproxima-se do PS, via Mário Soares, de quem se afasta progressivamente. Depois, por defender o amor verdadeiro de Sá Carneiro por Snu Abcassis, aceita entrar no PSD momento demais conhecido pelas suas intervenções como deputada, a favor da legalização do aborto, defesa dos direitos das mulheres e da cultura, No revés de múltiplas desobediências partidárias, segue-se o seu apoio à a campanha de Lurdes Pintassilgo à presidência, e mais tarde, no seu último contributo como parlamentar, ser deputada independente do PRD.

O que me interessa sublinhar nesta mulher que inventou a Mátria e a Frátria, como valores superlativos do comportamento humano, que representou a cultura e a literatura portuguesa mundo fora, é que até ao fim dos seus dias interveio como “um general sem medo” na defesa de causas: a defesa do património, dos direitos de autor e direitos humanos, integrou movimentos humanitários pela paz, abraçando justas causas como a da libertação da Palestina. Já muito só, e doente, fundou com José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues e Manuel da Fonseca, um ano antes de morrer, a Frente Nacional para a Defesa da Cultura.

De tudo o que pude fazer para encontrar a minha Natália nestes anos em que trabalhei, para além da coincidência de ambas sermos afastadas de São Miguel, muito cedo, e de termos vivido um dos momentos mais importantes da vida política das História Recente de Portugal, o 25 de Abril de 1974, só consegui reter uma ténue marca: a cicatriz de Natália que ma acompanhará toda a vida. Obrigada Natália.

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