Curvas e contracurvas

EMPANQUEI no étimo “calamento” por mero acaso e tenho consciência de que não é fácil explicar-me, até a mim mesmo, de forma cabal e satisfatória. A primeira vez que vi esta palavra escrita foi quando a encontrei a nomear um romance notável de Romeu Correia, que só li anos depois.

Apenas mais tarde vim a saber que calamento era também o que muitos presos políticos faziam nos interrogatórios da PIDE, sob tortura – cerrar os dentes e nada dizer. “Nem um pio”, explicou-me certo dia no Museu do Neorrealismo, em Vila Franca de Xira, o então director do “Avante!”, Dias Lourenço.

Mas não foi com esta significação que Romeu Correia utilizou essa palavra terrível. É que calamento era, desde séculos antes, um pedaço de corda de sisal que tinha numa ponta um barquito de pesca ou as mãos de um pescador e, na outra, um peso que prendia a precária embarcação desses famintos violadores do mar onde fosse preciso.

As comunidades de ílhavos e de algarvios que vieram, respectivamente, do mar salgado e da ria de Aveiro, bem como do sotavento algarvio, instalaram-se lado a lado com uma inultrapassável faixa de separação entre ele, perpendicular à costa, instaurando rivalidades e correspondentes lutas e violências recíprocas que a miséria gerava. Ao ponto de um rapaz de marca ílhava que ousasse namorar uma rapariga proveniente de Portimão poder ser perseguido e às vezes até sovado.

No século XX, o escritor almadense ainda verificou comportamentos colectivos destes e eu, num engasgamento das minhas emoções, a acabei por ser encaminhado para topónimos como Trafaria e Caparica, redutos destas atávicas tradições.

Há quem diga que o nome Trafaria deriva do facto de ter havido ali muitas redes de pesca, designadas localmente como tarrafas.

Terá chegado ao conhecimento do Marquês Pombal que, na chusma de cabanas miseráveis da povoação piscatória, se escondiam muitos refratários à tropa e que, por isso, a mandou incendiar, missão que coube ao chefe da Polícia, um tal Pina Manique, poupando apenas os que se integrassem legalmente nas fileiras militares e assim deixassem de sobreviver por expedientes perigosos para as populações e para o Reino.

Não parando na minha pesquisa, descobri que Trafaria significava o fim da terra conhecida dos algarvios e, muito antes disso, viera de Almaraza – do árabe al-maraje, ou seja, lugar por onde se sobe.

Já Caparica terá resultado de étimos latinos – cappar, cappari ou capparis, provindos do grego kapparis que significa alcaparra. Terá, portanto, sido um alcaparral, sendo que, em vários lugares de Trás-os-Montes, alcaparra é uma saborosa azeitona descaroçada que já comi em Miranda e recomendo.

Também se admite que o topónimo resulte de aí ter existido um cabo de areia, (“parte final”), lodo ou outro material macio – “rk” , “ser mole, macio” – pelo que aqaberik pode ter evoluído para qaberik e por fim para qaperik.

Calcula-se que a cidade da Costa de Caparica, onde já visitei o Convento dos Capuchos, a Igreja de Nossa Senhora do Monte de Caparica e a Fortaleza da Torre Velha, tenha tido para os romanos uma importância semelhante às de Alcochete, Montijo e Sesimbra.

Lá no alto, fica Sobreda, a antiga Suvereda rodeada de sobreiros de que falou Fernão Lopes e é hoje uma vila arejada ao lado da Capa Rica (Costa e Charneca de Caparica) onde morou, quase até à morte, um velho amigo meu, o Gabriel Raimundo, que frequentou a Sorbonne, a Aliance Française e a Universidade de Lovaina, tendo andado pelo maio de 68.

Fundador em Paris de “Portugal Cá & Lá”, foi mais tarde jornalista do “Diário de Notícias” no tempo de Saramago e seguidamente de “o diário”, comigo, antes de partir para Cabo Verde como formador e redator da “Voz di Povo”.

Este rijo beirão de Tortosendo foi preso em 1971, perto de Vilar Formoso, pela Guardia Civil, com mais cinco companheiros portugueses e logo encarcerado em Salamanca. Vinha para Portugal, integrado na luta clandestina antifascista.

O que são as curvas e contracurvas da memória…

Martinhando

ESTE ano, o Dia de S. Martinho mais parecia, logo de manhã, o Dia de S. João – a madrugada evoluiu para um nascer do sol amarelíssimo e durante as trevas tinha havido estrelas incontáveis, brisas suaves e cantigas de festa facultadas pelos pássaros noturnos. Depois, já quase ao fim da manhã, o céu ficou cinzento e a chuva não se fez rogada.

Pelas onze horas, mastigando umas castanhas assadas quase a escaldar, já estávamos na esplanada do costume, nos nossos fins de semana. Íamos temperando o calor na boca com uns goles aspirados de um tinto novo que este ano é de excelente qualidade, celebrando o Dia de S. Martinho, quando chegou o filho do mais careca de nós todos. Vinha a arfar, armado com um computador portátil.

Sacudiu o capuz e os ombros molhados, para logo se sentar na mesa que continuava livre, ao nosso lado. Assobiou para o balcão, fez uns acenos com as duas mãos e, quando a empregada coxa se aproximou, pediu-lhe uma bica dupla e um copo de água. Esta, com uma vénia e uma tossidela inexplicável, deu meia volta e, quando voltou com a bandeja quase ao nível dos joelhos, trazia também um pires com duas castanhas assadas e um rebuçado.

Disse-lhe:

– Oferta da casa.

– Obrigadíssimo.

O pai, apontando-lhe a maquineta, ordenou:

– Larga isso e senta-te com a gente.

– Tenho umas coisas para ver, enquanto a chuva não para. Posso?

Foi evidente uma certa arrogância na asserção do jovem. Martinho, julgo eu. Na nossa mesa, trocámos olhares uns com os outros e voltámos a atacar o prato das castanhas e as taças de tintol.

Nisto, apareceu a namorada do Martinho que se ocupou a esvaziar uma garrafa de cerveja preta e lhe atirou:

– Afinal, hoje não é só o teu dia. Vai ao Google.

E ele foi. Descobriu e disse-nos que na China se estava no Dia dos Solteiros, ou Guanggun Jie (em chinês 光棍节), um festival de entretenimento que celebra o orgulho em ser solteiro e já se transformou num dos principais dias de comércio on-line no mundo. Em casa, fui também ao Google e fiquei a saber que a coisa começou na Universidade de Nanquim, em 1993, inicialmente só entre os homens, sendo logo a seguir um evento popular em várias universidades chinesas durante a década.

O milionário festival continua cada vez mais a servir para a socialização entre solteiros, contando com eventos de encontro às cegas para que os interessados abandonem, à sorte e sem culpar ninguém, a vida de solteiros. O ano de 2011 marcou o chamado Dia dos Solteiros do Século com várias ações promocionais do evento, visando, principalmente, atrair jovens consumidores acríticos e ávidos de novidade.

Já no Reino Unido, o que se celebra é o Dia do Armistício, visto que no dia 11 de novembro de 1918, a na “undécima hora do undécimo dia do undécimo mês”, foi assinado pelos Aliados e pelo Império Otomano, em Compiègne, França, o fim das hostilidades na Frente Ocidental. Após a Segunda Guerra Mundial, o Reino Unido e a maior parte dos países da Commonwealth decidiram unir as celebrações do Dia do Armistício e estabelecer o Dia da Lembrança (Remembrance Day), um feriado criado para honrar os militares e civis envolvidos no maior conflito do século XX.

Nos EUA a data também é comemorada junto com o feriado do Dia dos Veteranos.

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