O G20 e a sua alternativa: a “Rota da Seda”

I

A cimeira do BRICS na África do Sul foi alvo da atenção de todo o mundo. Igual interesse internacional despertou o encontro do G20 na Índia, que teve lugar um pouco depois daquela cimeira. Os cinco membros do BRICS decidiram alargar o grupo. Nos novos membros estão incluídos o Irão, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, entre outros estados. O encontro do G20 também atraiu a atenção global. Da agenda constava a guerra na Ucrânia, entre outros tópicos. Para além disso, tornou-se evidente que alguns dos seus estados-membros planeiam lançar um novo projecto: o chamado “Corredor Índia – Médio Oriente – Europa” (por vezes, abreviado para IMEC – sigla em inglês). Entre os “pais fundadores” desta nova “aliança” estão os EUA, a França, a Itália, a Alemanha, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e a Índia.

O principal objectivo do estabelecimento de tal “corredor” é a criação de um contrapeso ao projecto da “Nova Rota da Seda” (Yidai yilu 一帶一路), iniciado pela China há cerca de dez anos, em 2013/14. Os motivos que levam à criação deste contrapeso são óbvios: o “Ocidente” continua a afirmar que a China se tornou um império agressivo, que coopera com a Rússia e que manipula os mercados económicos e financeiros em diversas partes do mundo – contra os interesses “legítimos” dos países mais “civilizados”.

II

O que significa tudo isto? Um dos propósitos do novo “corredor” é a intensificação da comunicação e dos transportes entre a Índia e a Europa, através do Médio Oriente. À primeira vista, parece bem. No entanto, a geografia constitui um problema. Como é que deverá funcionar um “corredor” entre a UE e a Índia? Dada a actual situação política, é impossível estabelecer uma ligação terrestre da Europa à Índia. A construção de ferrovias e de auto-estradas através do Irão e do Paquistão, com o objectivo de ligar a Índia à Turquia e à Europa, não faz qualquer sentido. O Paquistão e a Índia são rivais. Além disso, as sanções da UE ao Irão excluem a possibilidade deste país se tornar parceiro do “Ocidente” – e, assim, de se tornar um elemento que ajude à estabilidade deste corredor terrestre.

Posto isto, devido ao cenário geopolítico, a composição da infra-estrutura do IMEC irá consistir na criação de vários segmentos separados: (1) Os navios teriam de ir e vir através do Mar Arábico, entra a Índia e os Emirados/ Arábia Saudita. Algumas destas embarcações teriam de passar através do Estreito de Hormuz, que é actualmente uma zona perigosa. Por conseguinte, muitos navios preferem entrar no Mar Vermelho e seguir pelo Canal de Suez em direcção à Europa. Isto não é novidade. Durante décadas, o comércio e o tráfego entre a Índia e a Europa dependeram destas “avenidas”. No entanto, o IMEC pode conduzir a uma mudança do cenário geral: Aparentemente, o Egipto não se encontra entre os seus estados “fundadores”. Por isso o Cairo pode colocar alguma pressão no “novo” sistema e cobrar taxas adicionais para facultar a entrada dos navios no Canal do Suez. (2) As novas linhas ferroviárias que ligariam os Emirados, ou algum porto na Arábia Saudita, ao antigo Levante ou à Turquia, passariam através de um ou dois dos seguintes países: Jordânia, Iraque, Síria e Israel. Aqui chegados, é preciso perguntar: Será que estes países vão cooperar e apoiar o novo “sistema”? E o que dizer da visão deslumbrada de um transporte de passageiros de alta velocidade através dos desertos do Médio Oriente? E quanto aos regulamentos de vistos, o problema das migrações e dos refugiados que procuram asilo? Terão os visionários do IMEC pensado em tudo isto? Além disso, o fluxo total de transportes terrestres através do Médio Oriente seria certamente muito inferior ao fluxo dos transportes marítimos através do Mar Vermelho. Portanto, fará algum sentido construir ferrovias através dos desertos do Médio Oriente? (3) A partir do Levante, ou da Turquia, os navios vão ter de chegar a qualquer porto europeu. Pireu perto de Atenas, coopera de perto com a China. Então, que cidades seriam os portos de escala no Sul da Europa? Nada disto parece claro.

III

Existe ainda outra questão: Quem iria lucrar com um tal dispositivo de tráfego segmentado e, em termos mais gerais, com a dimensão política do IMEC? A UE? A Turquia? Ou a Arábia Saudita e os Emirados? Ou qualquer outro? – Como foi referido, a Arábia Saudita e o Emirados estão prestes a tornar-se membros do BRICS. Quando isso vier a acontecer, passarão a pertencer a dois “blocos” rivais, com interesses opostos. Fará isso algum sentido? Será que vai ajudar a região do Golfo a tornar-se um polo de atracção do intercâmbio pacífico euro-asiático, com uma intensidade nunca antes vista? Irão os Emirados e a Arábia Saudita funcionar como zonas limítrofes entre o “Ocidente” e a China e angariar enormes investimentos de ambos os lados ao sublinharem o seu “papel neutral”? Mas até que ponto serão “neutrais” na eventualidade de conflitos de maior dimensão?

Além disso, o Irão vai aceitar esta “jogada” às portas de sua casa? Há muito pouco tempo, devido às acções diplomáticas da China, a Arábia Saudita e o Irão iniciaram conversações sobre assuntos de interesse mútuo. É verdade, a coexistência pacífica é sempre possível. No entanto, os EUA e outros países insistem nas sanções a Teerão. Em contrapartida, a China tem uma mente aberta e generosa e nunca interveio militarmente no Médio Oriente. Assim sendo, é intenção do “Ocidente”, ou antes dos EUA, usar o IMEC como uma ferramenta contra o processo lento da détente política em certas zonas do Médio Oriente? Como é que o IMEC vai lidar com o desejo da China, e de muitos asiáticos, de pacificar toda esta região? Poderão a Arábia Saudita e os Emirados resistir à pressão dos EUA?

Existem muitos mais pontos duvidosos. Os órgãos de comunicação oficiais continuam a afirmar que as dissidências internas e os confrontos militares caracterizam a situação da Síria e do Iraque. Existem também várias opiniões sobre a forma de lidar com os curdos e com o seu desejo de constituírem um estado independente. Além disso, os europeus têm criticado repetidamente a Arábia Saudita pelas suas atitudes conservadoras. Censuram este país por não respeitar os direitos humanos. Estranho, não é verdade? Subitamente, a UE e os EUA, que sublinham constantemente a importância dos “valores ocidentais”, desejam cooperar com a Arábia Saudita para lutar contra a China. É altura de perguntarmos: Como é que o Governo de Riad, por vezes apelidado de “monarquia absolutista”, encara tudo isto? Será que sorri do alto da sua realeza perante as atitudes “ocidentais”?

Em contrapartida: a Arábia Saudita e os Emirados podem pensar que o IMEC é uma boa ideia, porque esta aliança pode permitir que a UE, ou os EUA, passem a importar mais alta tecnologia e a fazer novos investimentos no Médio Oriente. Os leitores não devem esquecer, de acordo com algumas previsões, que chegará a altura em que os mercados mundiais vão deixar de ter necessidade de comprar enormes quantidades de petróleo à região do Golfo. Pensarão a Arábia Saudita e os Emirados nesta perspectiva? Estarão preocupados com as novas tendências económicas? – Mais uma vez, não sabemos dizer.

Há também o problema da moeda. A compra e a venda de petróleo são feitas sobretudo em dólares americanos. Washington teme que o Médio Oriente possa alterar certos segmentos do mercado financeiro. Neste ponto, voltamos a lembrar-nos do BRICS e da ideia de introdução de novos mecanismos financeiros. Não há dúvida de que a Arábia Saudita e os Emirados vão observar a situação. Estão à espera para ver. O mais certo é acabarem por alinhar com quem lhes oferecer as melhores opções, – as mais pacíficas.

O pequeno e densamente povoado Israel também pode ter de reconsiderar a sua posição no contexto de uma vizinhança em rápida mudança. Actualmente, Israel acompanha de perto o mundo muçulmano e o seu armamento nuclear. Mesmo que tenha havido alguns comentários positivos do lado dos judeus em relação aos planos do IMEC, é melhor manter alguma cautela: Até que ponto é que é realista sonhar que um pequeno país altamente tecnológico vai aceitar o comércio livre com os seus antigos inimigos? Comércio de bens de todo o tipo através dos portos de Israel e circulação livre de passageiros através do seu território – será isso possível?

E por último, o que pensar da Índia? Os anglófonos continuam a dizer-nos que a Índia tem estruturas democráticas, que os seus muitos grupos religiosos coabitam em harmonia, todos sob o mesmo tecto. Mas o que dizer do sistema de castas? E dos problemas entre os hindus e os muçulmanos no Sul da Ásia? E quanto às fricções entre as etnias locais? E sobre o enorme fosso entre pobres e ricos? Importa que milhares de sul-asiáticos trabalhem na região do Golfo para receberem salários baixíssimos? Terão os políticos europeus pensado sobre a natureza “multi-facetada” das relações entre a Índia e o Médio Oriente? De acordo com relatórios recentes, a Índia planeia alterar a sua designação “oficial”: De futuro, deseja voltar a adoptar o antigo nome de Bhārat. Estas mudanças simbólicas fazem diferença? Que implicações vão ter para os cidadãos da Índia? E para o nacionalismo do Sul da Ásia?

A adesão simultânea a duas alianças rivais, BRICS e IMEC, daria à Índia a possibilidade de escolha, ou de, qual “equilibrista”, ir jogando com os dois lados, conforme as circunstâncias o ditarem. Dito de outra forma, tal como os Emirados e a Arábia Saudita, a India pode vir a colher frutos de polos opostos. O IMEC, assim parece, tem uma predisposição genética para comportamentos oportunistas.

V

A América do Norte fica muito longe do Mediterrâneo, do Médio Oriente e da Índia. Assim, em termos geográficos, o apoio dos EUA à ideia do IMEC não faz qualquer sentido. Só há uma explicação para a decisão de Washington: a vontade de não abdicar dos seus mercados tradicionais. Opõe-se ao projecto da “Nova Rota da Seda”, porque tem medo da China e da política de Pequim de manutenção da paz. Infelizmente, vários líderes influentes da UE, que passaram longos anos no mundo anglófono, seguem cegamente os pontos de vista e as indicações de Washington. Estes indivíduos transformaram-se em marionetas da Casa Branca, acreditam na existência de “valores comuns”, na sua superioridade, na força do “Ocidente”, e em qualquer coisa que nos faz lembrar a “missão civilizadora”.

Para além disso existem preocupações militares. Os anglófonos continuam a dizer-nos que a China quer estabelecer uma rede de bases militares em torno do Oceano Índico. A aliança AUKUS é uma espécie de contrapeso militar. É muito provável que o IMEC venha a ser, sem qualquer dúvida, uma aliança económica. No entanto, em determinadas circunstâncias, um tal sistema pode mudar as suas características, em função das suas estruturas institucionais e da situação política. Aqui podemos pensar nas forças navais e em outras forças da Índia, que estão a desenvolver-se rapidamente. Como é que o Médio Oriente encara tudo isto e o que podemos dizer sobre o Sri Lanka e o Paquistão? Estarão os líderes da UE cientes de todas as possibilidades que podem ocorrer no cenário político, ao “micro-nível” das relações entre Deli e o Médio Oriente?

Além disso, será que o “Ocidente” espera a cooperação militar da Índia contra os inimigos “conjuntos”? As forças dos EUA, e mesmo algumas tropas britânicas, estão presentes em várias partes da zona do Oceano Índico. Existem importantes instalações militares em Diego Garcia, uma ilha no arquipélago de Chagos, situada no meio do Oceano Índico. As forças dos EUA usaram frequentemente essas instalações durante diversas guerras. Este é apenas um exemplo da presença militar dos EUA nesta parte do mundo. Em contrapartida, a China não provoca outras nações e países desta região. Assim sendo, com quem é que a Índia vai cooperar? Bhārat, é claro, não pode ser enganado; conhece o seu passado; à semelhança da China, sofreu muito com a pirataria britânica. Por isso, pode alguma vez vir a confiar nos anglófonos??

VI

Curiosamente também, a Grã-Bretanha, que tem um primeiro-ministro hindu, não parece muito interessada no grupo IMEC. Por outro lado, a imprensa americana afirma que a iniciativa IMEC vai ser um agente transformador. A Índia também pensa (ou pretende pensar) de forma positiva. Há quem afirme que a “conectividade” tradicional entre a Índia e o Médio Oriente será muito mais importante do que o velho sistema da Rota da Seda. Vê-se que a máquina de propaganda trabalha a todo o vapor.

Há muitos migrantes indianos em várias zonas costeiras do Oceano Índico. Algumas cidades, ilhas e outros lugares têm líderes políticos de origem indiana, por exemplo Maurícia. Isso terá importância? Aguardamos com expectativa a emergência da “Grande Índia”, contrariamente aos desejos de Washington?? Sentir-se-á confortável o Primeiro-Ministro hindu em Londres com todos estes pontos de vista, opções, tratados, alianças e etc.?

Uma outra questão leva-nos até Ancara. A Turquia, um membro da NATO, está de alguma forma ligada ao sistema da Rota da Seda. A Turquia tem interesse na Ásia Central. Além disso, está em permanente contacto com a Rússia. Existe ainda o grupo Xangai, que inclui o Irão, a China, a Rússia e muitos outros membros. Então, o que irá fazer Erdogan? Será possível pôr a funcionar o IMEC sem o seu país? Quem sabe, talvez Ancara reaja iniciando um “contra- programa”, através de uma aliança que faça ressurgir a ideia da grandeza otomana num novo formato. Na antiguidade, os comerciantes otomanos exerciam a sua actividade na Índia e o Império Otomano estava em contacto regular com partes da Indonésia moderna. O Irão, pode acrescentar-se, é um caso semelhante. Em muitos portos da Ásia medieval, e do início da Idade Moderna, encontrávamos mercadores do Irão. Esta pode ser uma razão válida para Teerão propagandear a fundação de um “corredor iraniano comercial”? É certo que pensar nesta e noutras opções parece ridículo e rebuscado, mas diz-se que Otto von Bismarck afirmou: “A política é a arte do possível.”

VII

Finalmente, temos a UE. A reacção da imprensa europeia ao projecto do IMEC não é unânime. Na verdade, porque é que todos os países da UE devem seguir cegamente as ambições dos EUA? A era do colonialismo acabou, certo? Ou esta suposição está errada? Ficará o IMEC melhor sem os EUA? Suponhamos que não existiam forças nem intervenção dos EUA nos mares asiáticos. Nessas circunstâncias, seria de todo necessário criar qualquer tipo de aliança? O projecto da Nova Rota da Seda lembra-nos os velhos tempos quando o comércio através do Oceano Índico era sobretudo pacífico sem amarras a grandes alianças. Regra geral, as alianças são positivas se promoverem a cooperação pacífica e o entendimento mútuo. O IMEC é uma entidade concebida para prejudicar outra entidade, ou o seu principal interveniente. Não é disto que o mundo precisa.

Washington não é claramente altruísta. Finge ser gentil, mas não conhece limites. De facto, o chamado “Ocidente” é um conceito ilusório, existem poucos ou nenhuns “valores comuns”. A ideia do IMEC, se chegar a ser posta em prática, servirá Washington temporariamente, e talvez também alguns outros, mas é muito provável que a Europa não venha a ter qualquer tipo de benefício. Pior ainda, o IMEC tem potencial para prejudicar a Europa, porque a sua finalidade é aumentar as dissidências entre a UE e a China. A dissidência descontrolada entre elas tornará a Europa mais vulnerável. Não há qualquer dúvida de que uma economia saudável da UE não é do interesse das empresas norte-americanas, mas é do interesse da China. Os empreendedores e as empresas da UE e da China desejam cooperar entre si; Bruxelas, guiada por Washington, não parece aceitar esse desejo. Claro que alguns líderes europeus vêem mais longe, mas expressam opiniões distintas quando são confrontados com o projecto IMEC. Aparentemente, estes políticos têm medo. Para concluir: Washington pode regozijar-se – “divide et impera!”

No entanto, ia história fica por aqui? E se a Índia e o Médio Oriente, em qualquer altura, sugerirem subitamente que a China também deveria passar a ser membro do IMEC? Washington ficaria desconcertado. O governante hindu em Londres poderia reconsiderar o actual estatuto do antigo reino pirata e outros países lançariam um profundo suspiro de alívio. Talvez que muitos canais euro-asiáticos voltassem a abrir e talvez Bruxelas voltasse ao bom caminho.

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