Via do MeioO Man-man Carlos Morais José - 6 Ago 20237 Ago 2023 Ele há quem se interrogue perante determinados fenómenos naturais se estes não terão sido criados para induzir na humanidade determinados valores, incitar a certos comportamentos e evitar outros, como se a própria Natureza fosse um imenso livro de moral, quiçá de religião. E há, é claro, quem troce deste pressuposto, sublinhando que na Natureza existem exemplos capazes de satisfazer os mais opostos argumentos e nada fora do ser humano deve ser considerado na construção de uma verdadeira moral. Isto apesar do que é verdade e justo aqui nesta cidade, passa por aberração e mentira naquela, e assim por diante… Ora tomemos o seguinte exemplo. Pelo monte Chungwu esvoaça um pássaro, cujas características já fizeram a desgraça de incontáveis pedras de tinta, dada a quantidade de textos que a sua existência estimulou. Poderia, afinal, tratar-se apenas de mais uma espécie de pato selvagem, como existem tantas outras, nos céus imensos da China. Mas não. De seu nome man-man, trata-se de uma ave que apresenta o surpreendente predicado de cada indivíduo desta espécie contar apenas com um olho e uma asa. Esta peculiaridade acarreta ao man-man a obrigação de se juntar a outro da mesma espécie para conseguir levantar voo e cruzar os céus, ou seja, de voar em par. De uma forma geral, um man-man não consegue sobreviver ou sequer desempenhar quaisquer tarefas sem a presença de outro. Em geral, um man-man macho junta-se a uma fêmea, mas têm sido detectados casos em que duas fêmeas ou dois machos empreendem juntos o voo e a vida. Inevitavelmente, a descrição do man-man remete-nos para o mito do andrógino, tal qual nos narra Platão. Nele se descreve um tempo arcaico em que seres completos, possuindo características femininas e masculinas, capazes de se auto-reproduzir, terão irritado os deuses, devido à sua vaidade e arrogância. Para os castigar e pôr termo a esta situação, os divinos seres cortaram os andróginos ao meio, condenando assim cada metade a desesperadamente procurar a outra, o que explicaria os desvarios do amor. Se o andrógino do mito grego é castigado pelos deuses e tal explica a origem de seres divididos pela metade, já sobre o man-man chinês paira um turvo silêncio quanto à sua origem. Nada nos textos nos remete para um excesso de vaidade, arrogância ou pesporrência que tivesse condenado esta estranha ave a procurar a outra metade para sobreviver. Nada nos indica que, noutros tempos, as duas metades do man-man tivessem estado juntas. A necessidade do outro não deriva de um castigo, mas de um aflitivo estado natural, que nada deve a intervenções divinas. Na mitologia chinesa antiga, avistar um man-man era considerado de mau agoiro. Contudo, a partir da dinastia Han, a sua dupla figura começou a surgir em decorações funerárias como símbolo do amor conjugal e assim se espalhou pela cultura popular até aos nossos dias e mesmo para além deles.