Ni Yuanlu pintou uma pedra ou uma nuvem?

Mi Fu (1052-1107), o poeta e pintor dos Song, um dia ao tomar posse como magistrado no distrito de Wuwei (actualmente em Anhui), quando caminhava para a residência oficial, parou admirado diante de uma pedra. Logo envergou as vestes formais e segurando a placa do seu posto nas mãos, inclinou-se numa longa vénia de respeito perante o capricho silencioso da erosão natural e dirigiu-se ao monólito: «Pedra, minha irmã mais velha».

Noutra ocasião tomou uma decisão que iria lamentar toda a vida, ao trocar uma das pedras de moer a tinta da sua lendária colecção por uma nova casa que nomeou Retiro de Montanhas e Oceanos. Viver retirado do Mundo era uma ambição dos literatos a exemplo de Tao Qian (365-427) que explicitou em muitos poemas essa utopia, e de modo particular nos vinte que compôs «estando ébrio», de onde deriva uma caracterização que parte dessa situação: yinjiu, a «vida na solidão rural».

No fim dos Ming altos funcionários desesperados com o declinar inexorável da dinastia referiam-se a essa quimérica terceira porta, depois da inocência, do conhecimento convencional, a percepção livre e espontânea. Como o poeta e pintor de Shangyu (Zhejiang) Ni Yuanlu (1593-1644) no poema Imprevisto estando ébrio:

Não ficarei com os pés atados

à janela do Sul mas,

com eles desembaraçados,

irei dez mil li para onde

quer que me guiem.

Como ficar indiferente

a livros preciosos ou longas espadas?

Em pleno dia cantarei alto

a cada coisa maravilhosa.

Dado que o mestre Yang* só encontrou

desprezo ao escrever sobre mistérios,

terei Du Fu, que bebia muito, como guia.

E não é preciso perguntar

o que farei com a minha vida:

seguirei adiante, contemplando montanhas,

com um bastão de bambu na mão.

Ni Yuanlu, na última página de um álbum de 1640 (tinta e cor sobre seda, c.21,5 x 20,1 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton), escreveu uma nota:

Acordei cedo e como não tinha compromissos onde estar, fiz este álbum de pinturas, sinceramente, para o quinto irmão, Xianru.

Nessas dez folhas ,intituladas Amizade na Pedra (Shijiao tu), representou sucessivamente dez rochas diversas como personalidades, em que se reconhecem as quatro qualidades das pedras analisadas por Mi Fu:

Shou, a estatura elegante e erecta,

Tou, os buracos que permitem a passagem do ar e da luz,

Lou, os canais e rachas

Zhou, a superfície e textura.

Noutra pintura invulgar, Nuvem pedra (rolo vertical,tinta sobre seda, 130,8 x 45,4 cm, no Metmuseum) ele dirige-se à figura pintada como se fora um ser ciente:

Não é estúpida nem engana, Será uma nuvem, será uma pedra?

O último ano da vida de Ni é também o último da dinastia Ming e não é uma coincidência: leal aos nós da amizade, vendo que não podia seguir adiante, ele mesmo se retirou do caminho onde observava a lentidão das nuvens e a ainda maior das pedras.

* Wanli (1127-1206)

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