Via do MeioVoos imortais Ana Cristina Alves - 2 Ago 2023 Só os pássaros imortais voam na verdadeira acepção do termo, isto é, livremente, sem quaisquer condicionalismos ou restrições naturais; os outros, os pássaros do mundo foram feitos para voar: voam segundo um plano estabelecido pela própria ordem natural. Têm uma liberdade condicionada, mesmo assim representam, para maioria das culturas – e os chineses não são excepção –, uma ordem superior, simbolizam, habitualmente, os valores mais sagrados para as sociedades humanas. Os chineses que, como todos os orientais, mais facilmente criam empatia com os seres da natureza, identificam-se inteiramente com os pássaros. Estes são imagens vivas de homens e mulheres, de seres sábios, poderosos, autênticos, livres, imortais. Os símbolos variam ou aperfeiçoam-se consoante a filosofia que os adopta. Assim, para os confucionistas os pássaros, especialmente as fénix masculinas, personificam o governante justo, que traz consigo o mandato do céu e o dita à terra. Para os daoístas, os pássaros são, na maioria dos casos, símbolos da liberdade, autenticidade e sabedoria imortais. É interessante notar que, tanto para os daoístas como para os confucionistas, simbolizam os vários tipos de poder. Mas os pássaros não são escolhidos apenas pelas filosofias eruditas para representar uma ordem ética e ontológica superior: também ao nível popular é completa a identificação entre as aves e o melhor que a natureza humana tem. Os pássaros aprisionados simbolizam os próprios grilhões humanos. Diz-se que antigamente os homens ricos da China tinham belos pássaros engaiolados que identificavam com concubinas. Tanto as aves como as concubinas estavam inteiramente à mercê destes poderosos e serviam apenas para lhes ornamentar o ego, por causa da sua bela aparência. Entretanto, a sociedade chinesa foi-se democratizando, no sentido mais etimológico da palavra, e hoje o costume popularizou-se, por isso, já encontramos muitos homens do povo a passear as suas belas “concubinas” nas ruas e nos jardins. A Fénix, que como vimos pode ser masculina, representa normalmente o princípio feminino. Ela é a parceira do dragão e simboliza a imperatriz. Qualquer mulher que a traga pintada, por exemplo, na roupa, é “rainha” enquanto a ostentar. O corpo da fénix representa as cinco qualidades consideradas humanas: a cabeça, a virtude; as asas, o dever; as costas, o comportamento; o peito, a humanidade; e o estômago, a confiança. Já a fénix masculina é a incarnação de uma ordem e de uma justiça sobre-humanas, como nos recorda, tanto Confúcio, como Zhuangzi, o segundo maior filósofo daoísta. Numa fábula apresentada por este filósofo daoísta, a coruja possui uma sabedoria inteiramente mundana, luta pelos bens da terra e tritura tudo o que lhe possa dar alimento, como ratos mortos e já meio decompostos. Ela representa o homem prisioneiro do mundo que pretende governar; a fénix, pelo contrário, aparece, em contraponto, como uma ave sobrenatural, surgida do mar Meridional, em voo para o mar do Norte. Esta pousa apenas em certas árvores sagradas, come e bebe de fontes celestiais (XVII,2). Os pássaros, como todos os outros seres, estão condicionados pela sua própria natureza, têm asas, é natural por isso a sua apetência para o voo, que personifica o gesto verdadeiramente livre. Deste modo, as aves optam pelos impulsos espontâneos que as governam, opondo-se, sempre que lhes surge oportunidade para tal, a ordens artificiais, como a humana. Segundo a filosofia daoísta, o caminho da liberdade é preparado pela obediência à natureza de cada um. Assim, Zhuangzi relata-nos que um pequeno faisão do pântano tem pular dez vezes sobre um pé, só para comer razoavelmente e deve correr cem passos antes de beber um pouco de água. Não obstante o esforço, evita o galinheiro onde poderia sobreviver sem canseiras. (III,3) Pássaros como os grous são símbolo, por exemplo, de figuras humanas imortais e, como tal, da própria sabedoria imortal. Corre que Qing Wu, o pai do Feng Shui, ou Fong Soi em cantonense, terá vivido durante a dinastia Han e adquirido a sua sabedoria intuitiva de grous imortais. Estes metamorfosearam-se em homens para lhe transmitirem a sabedoria divina. Foi assim que ele aprendeu a reconhecer a energia que flui na terra e a seleccionar os locais para sepulturas, susceptíveis de transformarem em reis e sábios todos os descendentes de defuntos que nelas fossem enterrados. Os pássaros não são apenas o símbolo da liberdade, dos poderes humanos e divinos, da sabedoria imortal, da feminilidade, nuns casos, da masculinidade, noutros; eles são também, em muitas das lendas chinesas, o porto de abrigo de almas desprotegidas e atraiçoadas. Recebem as almas, protegem a sua autenticidade e verdade mais profundas e, depois, devolvem-nas à vida, no momento oportuno, para que seja feita justiça. Após este abrigo, os ressurgidos são felizes para sempre. Quantas raparigas chinesas, mortas à traição, não se transformaram em pássaros encantados para depois recuperarem a forma humana e a felicidade junto de familiares, amigos, ou amantes de que tinham sido afastadas? Há muitas lendas sobre este tema. Entre elas, por exemplo, a do Homem-Cobra. Este ficou sem a mulher, depois de uma irmã mais nova a ter morto para poder ocupar o seu lugar. A rapariga transformou-se num pássaro encantado que ia contar a sua história a uma das janelas da casa do novo casal. A irmã mais nova apanhou o pássaro, comeu-o e deitou os seus ossos à terra. Passado pouco tempo, no lugar dos ossos cresceu um lindo bambu, onde se abrigou a alma da irmã mais velha. A irmã voltou a cortar o bambu e fez dele um fole, que acabou por dar a uma velha pedinte. Esta, ao cabo de várias peripécias, recuperou a rapariga, proporcionando assim um reencontro feliz entre o homem-cobra e a sua mulher. O pássaro, ou melhor os seus ossos, transformaram-se em mais um elemento do ar, a madeira do bambu, que permitiu continuar a albergar aquela alma desprotegida pela sociedade humana, mas votada, devido à protecção das aves, a regressar à vida. Não têm conta na tradição chinesa os milagres narrados de retorno à existência que os seres do ar proporcionam aos humanos. Os pássaros acolhedores preservam as almas, alimentam-nas e devolvem-nas tão puras como anteriormente, mas muito mais leves, porque as libertam, com o auxílio do tempo, das penas que as haviam afligido. Há, por isso, que sabiamente seguir a via dos pássaros chineses e optar, sempre que possível, pela liberdade. Esta não é uma liberdade imortal, plena, mas uma liberdade obediente, condicionada aos ritmos da própria natureza. Tece-se na submissão ao quotidiano, é a liberdade possível. Há, ainda, segundo a sabedoria das aves, uma espaço a evitar – o do cativeiro, o das gaiolas, o das prisões artificiais, criadas pela mente e mãos humanas, que tantas vezes se atraiçoam a si próprias e aos outros. Quando a situação de cativeiro acontece, há que seguir, mais uma vez, o exemplo das aves: suportá-la estoicamente e aproveitar para escapar ao primeiro descuido dos donos.