O Livro de Horas

«Tempo! Suspende o teu voo». Lamartine implorava assim num magnífico poema: «parai, horas propícias!», mas o tempo não se detém e circula até desfazer todas as Horas. Propícia se devastadoras. Outrora apelidava-se assim por uma questão litúrgica, sendo um missal da regência quotidiana composto no século VIII, ao tempo de Carlos Magno, por um dos seus abades que desenvolveu tanto os ritos consagrados, quanto a pintura, por suas ricas iluminuras. Um livro destes era mais que um grafismo alfabético, destinava-se a ser contemplado, mas também é certo que só uma escassa minoria teria acesso a tão precioso objecto dado que todos eram compostos manualmente.O conjunto dos leitores também seria restrito, daí que, as imagens trabalhadas se apresentassem para grupos mais alargados tendo em conta sempre a maior sensibilidade plástica dos povos. Escrever era tarefa prodigiosamente morosa, e a palavra escrita um hermetismo tamanho de signos visuais, que ainda hoje proferimos a expressão «uma imagem vale mais que mil palavras». Só que não!Podemos ter muitas imagens sem jamais imaginar o poder do sopro do verbo.

Os grandes poetas retomam os temas, por isso nada se perde e, neste circunscrito e audacioso tema, pouco ou nada se transforma, que Rilke assume para si esta grande marcha criativa que vai encontrar intacta pela forma como nos devolve, uma das suas mais honrosas obras, «O Livro de Horas», em busca da alma russa, tão em voga no século dezanove enquanto entidade espiritual. A devoção das gentes aos seus ícones e a forma como dialogavam com eles deve ter sido um sintoma forte de um veio longínquo que nele tomou posse, e vemo-lo encantado debruçando-se quase no sentido contrário como que a legendar imagens, que o paradoxo é toda uma temática russa, idem, em sua grande dimensão: pois foi aí que a propriedade privada se cancela e ganha corpo uma nova sociedade, que as mais pequenas são feitas de muros e basta levantá-los para que todos tenham direito a ela. Mas o paradoxo maior é que ele mesmo sendo tão frágil, derrubou nas estranhas estradas de Eros candidatos de maior monta quando a bela Salomé por ele também se apaixona, tão russa quanto os seus apaixonantes ícones onde encontrou leituras até então inimagináveis.

Primeiro Livro, Segundo Livro, Terceiro Livro, e temos o seu Livro de Horas. Primeiro: «O Livro da Vida Monástica». Segundo: «O Livro da Peregrinação». Terceiro: «O Livro da Pobreza e da Morte». Quando isto acontece num só Rilke, a única coisa que me vem ainda à lembrança é Outubro Les Très Riches Heures du duc de Berry», mas também aqui me sinto longe. Outubro é demasiado burguês, tendencial, ornamental e evasivo para nos transmitir tão completo memorando e, ao adentrarmo-nos, vemos enfim diálogos raros em forma de poema, que é a única forma de transmitir o que subsiste de toda a aparência, e encontramo-nos de novo em presença de um livro de orações. Que nós também não devemos politizar o mundo desta maneira áspera que nos inunda se desejarmos uma rectificação mais abrangente, que todo este artifício com que somos contemplados nos desvia de todas estas outras coisas essenciais.

 

A França arde, mas o mundo também aquece, exactamente pelas mesmas razões em que tudo entra em rápida ebulição, que o ensinar esqueceu uma silhueta que não se sombreia entre as gentes, mas que teria dado forma a realidades mais humanas, assim a Humanidade tivesse desejado. Que toda a aflição nasce de situações ofensivas, e que há muito passámos colectivamente a barreira de ajustados diálogos que não nos servem absolutamente para nada. Neste livro tocamos as lamentações dos desvalidos, mas Rilke é apenas um poeta, mas talvez que tudo o mais não passe afinal de um desesperante efeito pernicioso.

 

Minha vida tem a mesma veste e cabeleira

que todos os velhos czares a agonia….

 

Rilke, O Livro da Vida Monástica, Primeiro Livro de Horas

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Leuwers
Leuwers
13 Jul 2023 15:44

Très beau texte