Via do MeioOs Pictogramas e o Espelho da Natureza Ana Cristina Alves - 20 Abr 2023 Durante longo tempo houve animada esgrima nos campos da sinologia linguística. Uns defendiam que a escrita chinesa não deveria ser considerada essencialmente imagética, pois era tão convencional e arbitrária como qualquer outro sistema linguístico, outros como Bernhard Karlgren (1889-1978) em Sound and Symbol in Chinese (1990) procuravam realçar o carácter pictórico desta escrita. Uma leitura atenta da referida obra de Karlgren é o suficiente para se compreender que o sinólogo não teve qualquer intenção de reduzir a escrita chinesa a pictogramas. Ele reconhece claramente que os pictogramas constituem um décimo deste tipo tão original de caligrafia, sendo a maioria dos caracteres compostos por uma parte ideográfica, e uma outra fonética. Diz-nos o autor que: “os chineses descobriram um meio simples e conveniente de criar novos caracteres ad libitum no método de compor novos caracteres, por meio dum indicador de sentido, o radical, e um indicador de som, o elemento fonético: a esmagadora maioria dos caracteres chineses – cerca de nove décimos- é composta desta forma.” (Karlgren, 1990: 44) O sinólogo defende que a escrita chinesa começou por ser imagética, procurando desenhar e reproduzir a natureza duma forma realista, tentava imitá-la para a referir, mas aos poucos foi evoluindo para um sistema linguístico bem mais abstracto e complexo, aproximando-se com os seus compostos dos tipos fonéticos de escrita. Veja-se como resume a evolução da escrita chinesa: “a primeira fase foi a da escrita imagética, que continuou por longo tempo, até que o stock de caracteres foi alargado, primeiramente por compostos lógicos, mais tarde por compostos fonéticos.” (Karlgren, 1990: 47) Como devemos denominar os caracteres chineses é, sem dúvida, uma questão pertinente no âmbito da Sinologia. Há quem lhes chame ideogramas, uma vez que cada caracter transmite uma ou várias ideias, há quem os considere, na esteira de Bussmann (Apud Peixoto, 2014: 19), semeogramas, pretendendo com o termo derivado da semiologia de Saussurre, enfatizar o aspecto semântico-visual da escrita como refere Bruna Peixoto no seu trabalho Chinês e Português, Distância Linguística e Sociocultural (Ibidem). No que me diz respeito prefiro a nomenclatura escolhida por Alexandre Li Ching, o autor de A Estrutura da Língua Chinesa (Li 1994: 34), que, denomina as palavras chinesas caracteres ou ideogramas, dividindo-os em seis categorias: • Pictogramas, que o autor define como tendo por origem objetos desenhados: sol(日 rì); cavalo(马mǎ); fogo(火huǒ); água(水 shuǐ), há cerca de seiscentos na língua chinesa; • Ideogramas, ou seja, os compostos lógicos de Karlgren, que indicam esquematicamente as ideias: um (一 yī); dois(二èr); três(三sān); cima (上shàng); baixo (下xià), sendo cerca de 100; • Ideogramas compostos, em que o sentido é obtido pela relação ou associação dos componentes claro (明míng), paz(安ān); bom(好 hǎo); homem(男nán), são cerca de 750; • Ideofonogramas, caracteres constituídos por um elemento que transmite a ideia, o ideoclassificador, surgindo habitualmente associado ao radical, e um outro componente, a parte fonética, que indica a pronúncia, como: açúcar( 糖táng),machado(斧 fǔ), mãe (妈mā), pai(爸bà), estes constituem a maioria dos caracteres. • Símbolos transferidos, caracteres em que se procede a uma extensão ou alargamento do sentido primitivo, sendo um dos caracteres mais utilizados para exemplificar esta classe, 网wǎng, que de rede para apanhar peixes alargou o seu sentido até à internet (网络wǎngluò、网上wǎngshàng、网站wǎngzhàn) • Falsos empréstimos, caracteres utilizados pelo seu valor fonético, que representam na origem uma palavra apenas homófona, por exemplo 来lái, que era espiga duma espécie de grão, tendo passado a significar o verbo vir. Entre os seis tipos de caracteres chineses, vamos então encontrar os pictogramas, aqueles caracteres que traduzem o espírito essencial, no sentido de primevo da escrita chinesa. Esta procurou na sua génese mimetizar a realidade, proporcionando à comunidade chinesa desenhos ou imagens fidedignas da mesma. Se não pretendessem sê-lo, o valor utilitário da comunicação teria diminuído. Porém, não é intenção com o afirmado reduzir a primeira escrita chinesa a um conjnto de símbolos utilitários, já que o ser humano revela, desde o seu aparecimento, uma forte tendência lúdica e artística. A principal questão que se coloca a este tipo de escrita do ramo sino-tibetano, definida como ideográfica ou semântico-visual, é: se os pictogramas se podem definir exclusivamente como desenhos da realidade e o que tal significa? Será que um desenho da realidade implica apenas uma cópia da mesma, realista, ou até segundo algumas tendências contemporâneas, hiper-realista, e, portanto, um olhar e um traço dominado pelo objeto? Ou desde o primeiro momento encontramos uma postura ativa do comunicador, do artista e do ser religioso que apresenta, oferece e nomeia a realidade que o interpela? Defendo que os pictogramas já poderiam ser introduzidos na classificação de ideogramas, uma vez que tendem a ser esquemas da realidade, ou seja, interpretações do criador linguístico. A este respeito, um exemplo notável é a introdução da escrita do Pequeno Selo (小篆Xiǎozhuàn), pelo primeiro-ministro de Qin Shihuang (秦始皇Qínshǐhuáng), Li Si (李斯Lǐsī), que, conforme relata Karlgren, se distinguiu na caligrafia, criando “um novo catálogo oficial de caracteres para orientação dos escribas. Ele fez o possível para preservar os antigos caracteres, mas simplificou-os, tendo substituído com frequência os velhos desenhos por algumas linhas sumárias.” (Kalgren, 1990:48) A meu ver, desde cedo encontramos uma postura extremamente ativa da parte daquele que regista e nomeia a natureza circundante. A comunidade linguística chinesa revelou a tendência de fixar e preservar a realidade duma determinada maneira, mais próxima da natureza, menos abstracta, manifestando um notável espírito realista e atenção ao pormenor. Talvez estas características não sejam exclusivas da mente chinesa, já que encontramos na escrita hieroglífica, por exemplo, na egípcia, o mesmo tipo de tendência. O que parece ser específico da mente chinesa é a incorporação e preservação dos seus pictogramas até à atualidade. Estes caracterizam-se por serem cópias deliberadas da natureza circundante, considerada perfeita para a transmissão das mensagens quotidianas, religiosas e artísticas. Para exemplificar o tipo de espírito que creio ter estado na base dos registos pictóricos, perpetuados até à atualidade, relato a história proverbial conhecida pela grande maioria dos chineses: O Peito Transformou-se em Bambu, atribuída ao registo poético de Chao Buzhi (晁补之, 1053-1110) da Colectânea Costela de Galinha (鸡肋集 Jīlèi JÍ), um título humilde, indicando coisas sem valor. E, no entanto, daqui é extraída uma das mais interessantes histórias proverbiais chinesas, Xiōngyǒu-chéngzhú (胸有成竹)que pode ser traduzida por “O peito transformou-se em Bambu” O Peito Transformou-se em Bambu Nos tempos da dinastia Song, viveu Wen Yuke na província de Sichuan, ele pintava muito bem. Gostava especialmente de pintar bambu, por isso plantou um bambual nas traseiras de casa que podia observar com todo o rigor da sua janela na Primavera, no Verão, no Outono e no Inverno, de manhã ao anoitecer, fizesse chuva ou sol. Seguia minuciosamente as mudanças e as formas dos ramos e das folhas do bambu ao longo das quatro estações, após o que procurava ser o mais fiel possível ao bambu nas suas pinturas. Ao tempo vivia também um letrado chamado Chao Buzhi, que muito admirava o talento de Wen Yuke para pintar o bambu, tendo escrito um poema em seu louvor, onde se podia ler: “Wuke ao desenhar, já tem o peito transformado em bambu.” Tal significa que Wen Yuke ao pintar já possuía a imagem completa do bambu. (胸有成竹) 宋朝的时候,四川有一个叫文与可的人,他很会做诗画画儿,特别喜欢画竹子。在他的窗前房后,种了很多竹子。从春夏到秋冬,从早晨到晚上,不论晴天雨天,他总是仔细地观察那些竹子。竹子的枝叶在不同的季节,不同的时间,不同的气候下是什么样子,有什么变化,他都观察得很仔细,他画的竹子跟真的一样。 那时候有一个文学家叫晁补之,非常佩服文与可画竹子的才能,而且写了一首诗来称赞他。其中有两句说: “与可画竹时,胸中有成竹。”意思是文与可画竹子的时候,胸中已经有了完整的竹子形象。) (北京语言学院,1984, 75-77). Também a escrita e a caligrafia chinesas possuem imagens completas e profundas da realidade que pretendem retratar, esquematizar, idealizar ou recriar, gerando-se entre o que escreve a escrita uma identificação profunda, por osmose, porque de tanto contemplar se transforma o contemplador na coisa contemplada ou, como diria Luís de Camões, o amador na coisa amada. Bibliografia 北京语言学院编(Instituto de Línguas de Beijing, ed.) 1984《基础汉语课本》阅读材料。Proverbes Chinois Annotes成语故事选.北京:外文出版社 Karlgren, Bernhard. 1990 [1962] Sound and Symbol in Chinese. Hong Kong: Hong Kong University Press. Lai, T.C (赖恬昌)1980 Chinese Characters. Hong Kong: Swindon Book Company Li Ching, Alexandre. 1994. A Estrutura da Língua Chinesa《汉语结构》Lisboa: Fundação Oriente. Peixoto, Bruna. 2014. Chinês e Português, Distância Linguística e Sociocultural. Famalicão: Instituto Confúcio da Universidade do Minho, Húmus