Breve introdução à vida e obra de Tao Yunming

“Não há muitos anos, os deuses da poesia decidiram convidar os maiores poetas da China para um banquete de príncipes e letrados, algures num terraço entre nuvens pendurado numa das montanhas mágicas do velho Império do Meio. Vieram Qu Yuan (343 – 278 a.C.) nostálgico e triste, Tao Yuanming (365-427), precocemente envelhecido, sereno, sobraçando um ramo de crisântemos, Li Bai, (701-762), imortal no exílio, com uma botija de vinho (…)”
António Graça de Abreu ,
in Prefácio, Poemas de Han Shan

 

A. Vida

Alguns sinólogos europeus chegam a falar de Idade Média para caracterizar o período da História da China que fica situado entre o fim da Dinastia dos Han (220 d. C.) e a breve dinastia dos Sui (589 d.C.). Esse período que, como disse, chega a ser classificado de uma verdadeira Idade Média da história chinesa é mais vulgarmente designado por Época das Seis Dinastias; liu chao, se as entendermos como sendo as Seis Dinastias puramente chinesas (han) do Sul ou Nan bei chao, se as considerarmos as Dinastias do Sul e do Norte. Bem a meio desta época, de intensa divisão nacional e por isso também muito conturbada, viveu o poeta Tao Yuanming, mais concretamente entre 365 e 427.

Tao Yuanming nasceu em Chaisang, no sopé Noroeste da montanha Lu. Se bem que Tao Yuanming seja muito mais um poeta do Tempo do que do Espaço, tudo leva a crer que o fascínio do lugar terá desempenhado um papel importante tanto na formação da sua sensibilidade como nas oscilações permanentes do seu modo de vida.

Assim, se Tao Yuanming acedeu ao mandarinato com a idade de 28 anos, a verdade é que interrompeu esta actividade muitas vezes. Em todas elas é possível estabelecer uma relação entre essas interrupções e profícuos regressos ao campo. E estes regressos ao campo são mesmo escolhidos pelos estudiosos da sua obra como marcos referenciais da sua evolução poética.

Durante o primeiro regresso ao campo (400-401) ele escreveu Voltando à minha antiga morada, poderoso poema onde a alegria se mistura com a angústia.

O segundo regresso ao campo (402 a 404), por ocasião do luto por sua mãe, corresponde, sabe-se, ao período provavelmente mais tranquilo da vida do poeta, período durante o qual escreveu os vinte poemas subordinados ao tema do vinho. Se alguma vez Tao Yuanming foi feliz terá sido durante este segundo regresso ao campo e pelo menos por três motivos. Antes do mais porque o evento do luto, permitindo-lhe um prolongado retiro o poupou aos acontecimentos sangrentos desencadeados pela rebelião de Huan Xuan contra o poder imperial, que só acabou quando Liu Yu, que se manteve fiel ao imperador, debelou a rebelião e restaurou a dinastia Jin. Em segundo lugar porque ao longo destes anos o poeta se exercitou nas práticas agrícolas, tão do seu agrado. Finalmente, porque embora hesitando ainda entre o mandarinato e a agricultura, ele adquiriu, durante este retiro, a consciência inequívoca da sua condição de poeta, tal foi o volume da sua escrita nesta época.

Segue-se o ano de 405, tão terrível, que no ano seguinte começará o retiro definitivo do poeta, cuja primeira parte vai de 406 a 412 e cuja segunda parte culminará na sua morte em 427.

O Grande Retiro que vai afinal de 406 a 427 será poeticamente inaugurado pelo célebre poema longo precedido de uma introdução não menos longa e intitulado Finalmente regresso a casa. Este é provavelmente o mais emblemático poema da obra de Tao Yuanming, pois nele o poeta explana de forma sistemática a sua ideologia de retiro, culto pela humildade e modéstia.

Antecipando-me a considerações que farei mais adiante, pergunto-me. Qual a natureza da motivação destes retiros, tão decisivos tanto na vida quanto na obra do poeta. Tradicionalmente enfatizam-se duas formas de aproximação: A hipótese do princípio moral e a hipótese da inclinação. Recusa da corrupção do regime ou eremitismo confuciano por um lado ou vocação campesina por outro. Por mim, como se verá, inclinar-me-ei mais no sentido de uma espécie de Pastoral on the Self, de grande modernidade e onde o retiro é colocado ao serviço de desígnios literários, embora estes desígnios literários sejam inseparáveis de uma posição moral onde a vida simples é promovida em detrimento da vida palaciana.

B. Obra

I. Generalidades

1. Apontamentos históricos comparativos

Haverá provavelmente uma afirmação que se pode fazer sem correr grandes riscos, a de que Tao Yuanming ou Tao Qian, como se preferir, é o mais aclamado poeta chinês anterior à grande época poética da História da China que foi o período da Dinastia Tang. É um dado adquirido que entre os séculos VII e X (618-907), a China conheceu o apogeu de uma tradição poética que contudo possuía já todos os seus alicerces. E um desses alicerces foi sem dúvida o grande Tao Yuanming. O poeta da reclusão cultivou todos os grandes temas da tradição poética chinesa e fê-lo em grande estilo. É portanto também um dado adquirido que antes da época que imortalizou figuras como Li Bai, Wang Wei, Bai Juyi, Du Fu, Han Shan, Jia Dao, Li He, e cito apenas os mais consensuais, costumam referir-se sempre dois grandes poetas, que podem ombrear pela qualidade da obra com estes grandes vultos. Estou a referir-me ao poeta Qu Yuan que viveu entre os séculos IV e III anteriores à nossa era; e claro a Tao Yuanming que viveu como já vimos entre os séculos IV e V da nossa era.

Sabe-se ainda que Tao Yuanming tentou bastantes vezes afeiçoar-se a uma carreira de funcionário por necessidade e, eventualmente, pelo pudor que sentia atendendo ao facto de poder ser condenado por levar uma vida demasiado ociosa; mas jamais por vocação, pois essa estava reservada exclusivamente à poesia e à vida campestre, como aparece claro em muitos momentos da sua obra. Até que definitivamente venceu a propensão do poeta para uma vida retirada, discreta e em larga medida contemplativa.

E digo ‘em larga medida’ porque, de facto, o seu retiro foi sempre acompanhado de afazeres rurais, pequenas coisas contudo, mais jardinagem do que agricultura propriamente. Se eu tivesse que — à semelhança dos modelos ocidentais — situar Tao Yuanming no quadro de uma pastoral do retiro, situá-lo-ia mais no domínio da bucólica do que na geórgica, uma vez que os trabalhos agrícolas têm o sabor de uma evasão e jamais a carga muito ocidental e cristã de ganhar a vida com o suor do rosto. A geórgica ocidental evoluiu rapidamente do didactismo de Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo e das Geórgicas de Virgílio, ainda didácticas mas já muito poeticamente sublimadas, para uma perspectiva pós-adâmica e portanto pós lapsária (após a queda), em que o trabalho, mesmo quando em contacto com a natureza, ganha o sabor de um castigo, que nunca tem por exemplo na obra de Tao Yuanming. Nem didactismo, a não ser moral, nem castigo e sofrimento, antes evasão e entretenimento.

Mas a verdade é que há trabalho rural e por vezes chega a ser do fruto desse trabalho que o poeta sobrevive. E mesmo assim eu acho que se trata de um trabalho evasivo, concebido como interlúdio entre o qin e os livros, afinal tão lúdicos uns quanto os outros.

Mas, por outro lado, o trabalho da terra, o trabalho em contacto com a natureza possui sempre o valor de uma purificação e de uma regeneração. No Ocidente esta purificação e esta regeneração têm tendência a dramatizar-se religiosamente numa economia complexa do bem, do mal e da culpa. Na China não me parece. E esse trabalho rural, quando não possui as características referidas, não possui senão o valor de uma purificação moral e de um complemento saudável ao trabalho espiritual. Convenhamos que há mais idílio e bucolismo do que qualquer outra dimensão pastoral1.

Atrevo-me contudo a pensar que em Tao Yuanming haveria também uma espécie de auto-consciência pragmática de que o regresso ao campo poderia favorecer e potenciar as energias criativas, no caso dele poéticas sobretudo, e nesse enquadramento psicológico, muito particular, poderíamos falar também de uma Pastoral On The Self, que na Europa culmina no século XVIII mas que teve em Petrarca provavelmente o primeiro teórico e a primeira forma de realização. Lembremo-nos do que Petrarca disse, na época em que já se havia decidido pelo seu retiro em Vaucluse, em a Posteritati: “(…) Encontrei um pequeno vale, solitário e ameno chamado Vaucluse, a quinze milhas de Avignon.

É lá que nasce o Sorgue, duma fonte que é a rainha de todas as fontes. Encantado pelo charme deste lugar, instalei-me aí com todos os meus livros (…)”2. E também o que pela mesma época confessava a um amigo: “Esperando curar na frescura destas sombras o meu ardor juvenil que, tu o sabes me queimou durante tanto tempo, eu tinha o hábito de me refugiar muitas vezes aqui desde a minha adolescência, como numa fortaleza inexpugnável”3.

E, esta evocação ganha ainda mais sentido se tivermos em conta que Tao Yuanming cultivou com denodo uma sempre continuada procura da solidão. Ora, Vaucluse é antes de tudo o mais, parece-me, a fundação do mito da vida solitária, que irá marcar a cultura ocidental até aos nossos dias. Menos de dez anos depois da sua chegada a Vaucluse, Petrarca escreveu o tratado De Vita Solitaria, que entretanto dedicou ao seu amigo Philippe de Cabassole que possuía um castelo sobre um dos flancos do vale.

O carácter de isolamento assim como o pragmatismo da escolha do lugar é referido pelo poeta de uma forma inequívoca em 1351 num epigrama que enviou a Philippe de Cabassole: “Não há lugar sobre a terra que me seja mais querido que Vaucluse, nem lugar afastado que seja melhor adaptado aos meus estudos”4. A prova de que a escolha do lugar não só obedeceu a esse critério, mas ainda que tal escolha foi bem sucedida, está na extrema produtividade do poeta durante o tempo que ali residiu. Aí de facto começou e acabou pelo menos numa primeira versão, obras tão importantes como: o De Vita solitária que já referimos, o De Otio religioso, o Secretum, além de numerosas éclogas do seu Bucolicum Carmen, cartas, epístolas e ainda a segunda versão do Canzoniere.

Em muitas outras circunstâncias e textos encontramos esta apologia da vida solitária como o ideal para que o poeta possa prosseguir o seu trabalho de reflexão. Não nos admira, uma vez que isso está de acordo com o que ele pensava da vida agitada das grandes cidades como Avinhão a quem ele chamou depreciativamente a grande Babilónia, assim como das actividades que preferencialmente aí se desenvolvem: o negócio o carreirismo politico ou eclesiástico com o seu cortejo tradicional: ganância, orgulho, vazio existencial, baixeza, imoralidade, etc. E está ainda de acordo com as suas grandes paixões culturais à cabeça das quais é justo colocar a Filosofia estóica em geral e o grande filósofo romano Séneca em particular. Muitas vezes, ao ler Tao Yuanming, eu senti que nele se exercita a mesma aversão pela cidade e pelas actividades que aí predominam.

Ora as comparações valem o que valem e quando são tão diferentes as situações, quer no tempo quer no espaço, devem ser olhadas com parcimónia. Mesmo assim não deixo de enfatizar algumas coincidências:
— A procura da solidão.
— O reconhecimento de que o retiro liberta tempo e paz para a criação.
— O discurso sobre as babilónias deste mundo. Lugares que perturbam a tranquilidade, corrompem moralmente, e até alienam aquilo que é essencial.
Curiosamente, porém, é o facto de que tanto em Petrarca como em Tao Yuanming predomine uma certa tensão entre elementos clássicos e elementos maneiristas e barrocos, continuando a utilizar as categorias temáticas e periodológicas europeias. (continua)

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários