Sobre O imortal do Sul da China

Por Giorgino Sinedino

I.

Um dia destes, tomei coragem para arrumar a biblioteca. Os livros tinham se acumulado sobre o chão, pilhas e pilhas e pilhas. Notei que havia umas brechas nas prateleiras mais próximas à janela e mais rentes ao teto. Repassando os títulos nas lombadas, percebi que os livros não eram coisas inanimadas, mas um tipo de amigo, portadores de expectativas, experiências e emoções que gostaria de ver compartilhadas.

Além de acomodar os volumes mais recentes, ou seja, amigos mais próximos de quem sou hoje, aproveitei para reorganizar algumas divisões, já canonizadas pelo desuso. Isso me deu uma certa angústia, parecida com a de ter de ir a um lugar que deixara de ir e acabar revendo uma pessoa que não necessariamente queria rever. Cada prateleira acumula até três fileiras de livros, que estão lá como três camadas de memória(s).

A minha intenção original era a de que, quanto mais no fundo, menos esquecíveis deveriam ser os textos. Mas o tempo é implacável. Retirando os volumes maiores, revia velhas amizades que desbotaram pelo estranhamento, até que se lhes agarrou uma brochurinha partida ao meio, as capas soltas, a lombada machucada pelo abandono (e pelo pouco uso que se perdeu pelas décadas). Era a Via de Chuang Tzu, uma retradução para o português da tradução em inglês do Padre Merton, um monge trapista e filósofo americano que se encantara com aquele (monge? Filósofo?) chinês do final do século IV antes de Cristo. Com as mãos grossas de pó e poeira e fuligem, aparo a capa que cai, revelando uma assinatura ideográfica e uma data cujo significado nada despertava em mim.

II.

Um menino buchudo de cabelos encaracolados, queimados pelo álcool do perfume que a mãe lhe derramava teimosamente sobre a cabeça, entra no “quarto de despejo”, recém-construído nos fundos da casinha do conjunto habitacional Mirassol, situada no número 649, parte baixa da ladeira da rua das Violetas em Natal, Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil, um país grande, mas muito estranho, da América Latina. Ia ali porque no “quarto de despejo” o pai do menino havia despejado alguns livros que comprara no embalo de sua mais nova mania, a de atentar para “coisas do Oriente”.

Praticava ioga, comia vegetariano e fazia outras coisas que o menino não entendia, mas tinha uma curiosidade não correspondida, exagero, mal correspondida. Havia livros sobre meditação, Sunzi, karatê, macrobiótica, Osho, samurais, medicina herbal e tudo o mais que você conseguir imaginar. Também havia um livrinho, cento e poucas páginas, a capa lustrosa em três cores, com um nome engraçado que aquele dentuço baixinho não sabia pronunciar. Abriu-o para procurar ilustrações, mas a frustração não o impediu de ir adiante e ler uma ou outra coisa.

III.

Um viajante chega de Brasília a China para participar de um minicurso, ao todo quase duas semanas pela frente. Tinha uma tarde livre. Como usá-la? Pensou quero ir ver um templo daoista. Tinha um ali, perto do alojamento. Uns poucos iuanes de táxi. Era um dia bonito em maio, nem frio, nem quente. O céu estava azul cobalto, o sol brilhava branco. Chegou ao “pai-iuin-quã’, “Templo da Nuvem Branca”. Famoso das histórias de alguém que peregrinou pelo mundo para ver o grande Khan. O tempo não parara. Havia alguns turistas, poucos, chineses, tirando fotos.

O chão era mais antigo, os prédios pareciam ter sido renovados há algumas décadas; observava alguns cartazes explicativos, só entendendo, mal e mal, o que estava num arremedo de inglês. De repente ouve distante uma música de tubos, címbalos, uma percussão monótona, um canto que lhe parecia ladainha de alguém hipnotizado.

Nuvens de incenso sopravam preguiçosas do Oeste para o Leste. O viajante caminha pelo labirinto de espaços menores, retangulares, em que o templo se dividia, passando por toda a sorte de capelas com estátuas ou espaços privados dos monges, até que um longo varal abana pesado de mantos e calças, cobrindo o que restava do templo – um galpão de zinco e um pequeno santuário. Um casal prostrava-se sobre duas almofadas, enquanto um monge dançava desengonçado à frente deles, segurando tiras de papel.

IV.

Um pós-adolescente trintão sai do metrô, estação Nanlishilu, parte Oeste de Pequim. Nervoso. Anda em direção o “Templo da Nuvem Branca”, sem saber mais ou menos onde está. Enxerga uma placa sobre os trilhos de um bonde que parece não passar mais por ali. Está perdido.

Pergunta a um eventual passante, que lhe indica o caminho. Entra por uma entrada mais ou menos dilapidada, vê o alto portal de madeira, secularmente de pé, que não saúda a ninguém, vangloriosamente. Aborda-lhe uma grande autoridade, o segurança, que é o dono das chaves. Temendo não ser compreendido, diz umas coisas enquanto inspeciona com mil olhos o hirsuto invasor bárbaro que ousara interromper a sua terceira (ou quarta) sesta naquele dia.

Não o dissuade de entrar, contudo, despedindo-o com um abanar de cabeça e um riso sem-jeito. O visitante apressou-se: O que fora fazer ali? Esperava talvez que um dos mestres aparecesse do vazio, acariciando a barba, dizendo que tinha potencial para ver além do tempo e do espaço, para voar para onde quisesse e para viver para sempre – como num daqueles filmes de Hong Kong, vestido em roupas de rayon e uma peruca grosseira?

Passa por pessoas que se parecem muito com aquele mestre de sua imaginação. Um deles tinha uma imensa barriga redonda, que tomava sol desavergonhada, sob as carícias de uma mão grosseira com unhas extraordinariamente longas e sujas. Chega às portas da cela assinalada. Bate duas vezes. Um rosto imberbe, de traços delicados, o recebe com um calor frio.

V.

Era um jovem loiro, um perfeito sósia de Rasputin, que viera de Bucareste para a China há muitos anos. Gostava de esoterismo, sabia interpretar o tarô e arruinara seus joelhos treinando kung-fu. Desgostava-lhe a vida em casa e tinha mergulhado nos mistérios do “Oriente”. Vivera no Tibete – na verdade, na província de Qinghai, parte do Reino Tibetano da Antiguidade – e tinha vivenciado muitos prodígios. Tornara-se bom amigo de Ioiô, um colega de mestrado que chegara do Brasil há vários anos.

Ambos iam visitar um mestre daoista que havia abandonado a vida monástica. Passara a ganhar a vida fazendo cítaras Qin, apelidadas “Qin de Trovão”, pois eram moldadas de troncos derrubados por raios. Contam as lendas que esses Qin, sob as mãos certas, fazem chover e curam doenças. O mestre estava bem de vida, portanto algumas pessoas deveriam ter sido curadas de câncer e, quem sabe, um deserto deve ter virado mar. O encontro foi divertido, pois lá estava um outro mestre, que acabara de receber muita cobertura jornalística. Havia passado 50 dias sem comer, preso numa gaiola de vidro – um hamster do Dao.

Miraculosamente, continuava roliço após tanto tempo de privação. Praticava, com sucesso evidente, a técnica conhecida como “Jejum dos Grãos”. Durante os cinquenta dias, além de ter sido bem fotografado e filmado, esculpiu peças abstratas, que tinham por característica, todas, terem um orifício no meio. Disse que eram produto do “Dao”, já que o orifício “a tudo permeia”, “é a unidade além da diversidade”, “é o vazio que dá sentido às coisas” – citações de Laozi aplicadas à criação artística.

VI

Um e-mail chegou identificado com o assunto: nota de falecimento do mestre (…). A equipe do templo em Barcelona publicara um obituário. O mestre morreu, melhor, “ganhou asas” repentinamente. Ainda falava em organizar tal ou qual evento, louvava o belo jardim que preparava para gozar a sua aposentadoria, além de coisas menos mundanas – com menos frequência. O e-mail explicava que numa questão de dias, começou a vomitar ininterruptamente, reclamando de um arder no corpo, como fogo. Às vezes parecia ter visões, ou alucinações. Em momentos de lucidez, tinha um semblante esperançoso. Dizia-se ir rever o mestre, e o mestre do mestre… no Pouso dos Imortais. O tempo.

VII.
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∫∫∫

No livro, “há ensinamentos, sem esforço didático; é preciso interpretar, mas as conclusões estão fora das histórias”

As sete vinhetas acima pretendem descrever uma experiência pessoal do Daoismo, uma das mais importantes tradições intelectuais e espirituais da China, através de episódios aparentemente independentes e compartimentalizados. É notável que, em vez de utilizar um estilo narrativo a que estamos habituados em nossa tradição literária, imitei conscientemente o tipo de texto que encontramos no original chinês da obra 莊子, comumente referida como Livro do mestre Zhuang ou, singelamente, Zhuangzi. Com essa brincadeira meio séria, desejo dar uma primeira impressão do que é ler o Zhuangzi em chinês e problematizar o que fiz em minha tradução-comentário dessa obra para o português. Antes de mais nada, o leitor das vinhetas deve ter se dado conta, imediatamente, de que esse tipo de estilo literário e de estrutura narrativa cria inúmeras possibilidades de interpretação e conduzem a inúmeras possibilidades de se reagir ao que o(s) texto(s) parece(m) sugerir.

Muitas dessas possibilidades são falsas, pois conduzem a um entendimento culturalmente errado do texto. “Culturalmente errado” significa tratar do texto de uma maneira diferente daquela que os destinatários autênticos (os leitores chineses, especialmente os do período imperial, que começou no século III a.C. e terminou em 1911) tratam ou podem tratar dele. Ou seja, em minha forma de ver, o sentido “universal” da obra deve ser buscado dessa experiência particular. É preciso, consequentemente, submeter a obra a um tipo de enquadramento. Logo, para enquadrar a nossa discussão, vamos tentar compreender a importância do título que escolhi para a tradução. O original chinês possui dois tipos de título, que refletem duas atitudes básicas sobre a obra.

Como disse, é mais comum chamarmos Livro do mestre Zhuang ou Zhuangzi – o Chuang Tzu de Merton. Na verdade, esse não foi um título escolhido pelo “autor” da obra, mas uma mera atribuição de autoria, feita pela posteridade, segundo um padrão comum na história das ideias chinesas. Por exemplo, a obra de Mozi, patrono do Moísmo, é chamada de Mozi; a obra de Xunzi, um influente pensador confuciano, é chamada de Xunzi; a obra de Han Feizi, o maior representante do “legalismo”, é chamada de Han Feizi. Quem utiliza essa denominação assume que a obra é parte da chamada Literatura dos Mestres, o corpus de textos compilados sob a autoridade de pensadores de renome, líderes de comunidades que competiam entre si para obter prestígio e patrocínio político. Consequentemente, o título Zhuangzi classifica os textos de Zhuang Zhou (369-286 a.C.) – o mestre Zhuang, de seus discípulos e um conjunto de outros autores, fãs ou críticos de Zhuang Zhou, como parte desse movimento dos mestres. Isso é relevante porque Zhuangzi passa a ser enquadrado como um caminho entre vários no que se refere a questões de interesse comum para o pensamento chinês, por exemplo como se cultivar intelectualmente, de que maneira se comportar em sociedade, de que forma buscar a perfeição moral etc. Isso faz com que o Zhuangzi seja facilmente definido como (mais) uma obra de “filosofia”, pelas reconhecidas semelhanças de forma e conteúdo com essa porção de nossa experiência cultural.

Por outro lado, também é possível chamar a este livro de 南華真經, o título que a tradição religiosa daoísta atribuiu ao Zhuangzi, por honrá-lo como uma escritura sagrada. Mais do que para apelar melhor aos olhos do leitor, foi esse enquadramento que me levou a adotar a tradução semiliteral de O imortal do Sul da China.

O sinólogo alemão Richard Wilhelm já havia partido desse segundo título chinês, traduzindo-o como O Livro Verdadeiro das Terras Floridas do Sul (1920). As “Terras floridas do Sul” de Wilhelm são uma leitura poética de “Sul da China”, pois uma das palavras clássicas para China é 華, que significa “flor que acaba de desabrochar”. O “Verdadeiro”, a que Wilhelm se refere com seu título, qualifica o livro, sem dúvida, mas também remete a um tipo de ideal de existência, realizada pelo “autor” desse livro: “Homem Verdadeiro” é um jargão do daoísmo, cujo sentido é basicamente o mesmo que “Imortal”. Os “imortais” daoistas são todos os grandes mestres que dão substância ao pensamento e práticas relacionadas à essa doutrina, purificando seu corpo e prolongando sua existência, o que exige realizações também nos planos de sabedoria e de espiritualidade. Portanto, a minha escolha do título destaca esta visão específica e culturalmente referida da obra: é mais do que um texto clássico de “filosofia” chinesa, pois, em vez de ser tolhido por um esquema/sistema intelectual prévio, presume uma mentalidade e concepções de vida profundamente diferentes das nossas. Exige uma explicação holística, um esforço de tradução não apenas textual, mas também cultural.

Agora que esboçamos um enquadramento, retornemos às sete vinhetas para falar das características literárias do Imortal. A quase totalidade dos textos recolhidos no original chinês possui uma extensão comparável (ou inferior) à das vinhetas. A grande maioria consiste em breves narrativas em que se destacam diálogos curtos. Uma quantidade considerável são “ensaios” ou “aforismas”: discursos feitos por Zhuang Zhou ou a ele atribuídos. Tal como nas sete vinhetas, há fatos, há conceitos, há ensinamentos, sem que nunca haja um esforço didático de apresentar algo; é preciso interpretar, mas as conclusões estão fora das histórias; há quem afirme haver um “sistema”, mas no texto só restam experiências em toda a sua singeleza, emoções nuas. Por esse motivo, quem folheia uma tradução literal do Imortal pela primeira vez descobre no máximo umas poucas estórias interessantes ou memoráveis.

É mais provável, entretanto, que se desista de ler após se surpreender com a total falta de coerência entre estória e estória, entre capítulo e capítulo. O que causa estranheza ao leitor ocidental, porém, conforma-se aos hábitos intelectuais dos leitores chineses antigos. Eles não estavam interessados no que a obra “queria dizer” como um todo – o que é demasiado importante para nós – mas apenas em certos ensinamentos ou insights que pudessem ser postos em prática ou servir de guia para a “sabedoria”.

O daoísmo, em consonância com a atitude geral chinesa, admite que cada leitor depreenda o significado de um texto “conforme a sua capacidade de intuir o que transcende às palavras”, ou seja, o significado da obra em última instância é algo imaterial, contingente a quem a lê. Este é o grande desafio de traduzir, não só o Imortal, mas qualquer obra do pensamento chinês para qualquer língua ocidental.

Tomando o exemplo do Imortal, tento enfrentar esse desafio em dois planos: das unidades menores (os textos singulares) e das unidades maiores (capítulos e obra como um todo).

Em primeiro lugar, esforço-me para providenciar material adicional, para que o leitor consiga adumbrar para si um contexto autêntico, gabaritando-se a ler a obra de uma forma mais próxima do leitor original. Ao longo da era imperial chinesa, alguns dos melhores leitores escreveram-lhe comentários, parte dos quais foram integradas ao texto do Imortal, servindo-nos, no mínimo, como guias de leitura, no máximo, como explicações/interpretações dotadas de autoridade. Uma tradução culturalmente fiel exige que esses conteúdos também apareçam de alguma forma, em alguma altura do volume. Isso serve de justificativa para que em meus trabalhos eu acrescente esses comentários verbatim, e/ou elabore notas, e/ou componha comentários, e/ou, (como fiz desta vez no Imortal,) enxerte material e trabalhe literariamente o próprio texto principal – flexibilizando o princípio fundamental de fidelidade ao original. Apesar dos riscos, quem compara a minha tradução-comentário do Imortal com qualquer outra feita segundo as concepções tradicionais percebe que consigo oferecer uma leitura mais redonda, pois agrego uma interpretação autêntica e fiel à(s) leitura(s)-padrão chinesa(s).

Em segundo lugar, especialmente no caso do Imortal, preocupei-me também com o problema do todo, da interpretação geral do texto. À maneira das vinhetas que escrevi no início deste texto, eu entendo que as estórias e ensaios de Zhuang Zhou são apenas aparentemente desconectadas. Em minha leitura, admito a existência de um ligame invisível que dá coerência geral à obra. Esse ligame, em meu entender, já tinha sido destacado pelo processo de edição do texto, que coligiu as diferentes estórias em sete divisões que interpreto/traduzo como sete capítulos temáticos. Meu argumento é o que sugeri nas sete vinhetas que abrem este ensaio: é fácil percebermos que há uma trajetória existencial, motivada pela vivência no daoísmo. Idem para o Imortal, embora, obviamente, seja algo bem mais rico e consistente do que as vinhetas, pois não se trata de alguém que ainda está em busca, mas de alguém que certamente encontrou “alguma coisa”… dentre muitos fracassos e desilusões. Diferentemente das vinhetas, Zhuang Zhou inicia seu texto não com a reminiscência de uma descoberta, mas com a dramatização dum ideal que construiu. Ele não refere, passo a passo, como se integrou a um tipo de comunidade, mas expõe, passo a passo, como esse ideal pode ser buscado e, eventualmente, atingido – indiferente a qualquer comunidade.

Tendo definido o enquadramento da obra, apontando o desafio de traduzir/comentar um texto com estilo estranho numa língua arcaica e explicado as duas linhas-mestras de minha tradução-comentário do Imortal do Sul da China, talvez valha a pena falar um pouco sobre a motivação para ter lido e estudado, e, finalmente, para traduzir e comentar esse texto para outras pessoas. A chave é esse “algo” que Zhuang Zhou encontrou em sua busca e que, à sua maneira, tenta nos comunicar e a que meu comentário, torço, empresta maior visibilidade e coerência. Lembro que o comentário é intentado como nada mais do que uma cerca ao longo do caminho, colocada lá não para impedir passagem, mas para balizar uma direção, dando segurança ao leitor em seu passeio da liberdade ao Dao.

Não julgo necessária nenhuma leitura preparatória sobre daoísmo. Como qualquer pioneiro, Zhuang Zhou é daoísta antes de existir um daoísmo. Hoje em dia, o daoísmo é, basicamente, uma religião institucional e monástica. Zhou não sofre sob o peso dessa bagagem. Assim como nas vinhetas, o Imortal também se refere a tipos de práticas, a determinados espaços sagrados, a praticantes que já obtiveram algum progresso etc – mas nunca diz como algo deve ser, não discrimina regras rígidas sobre o que fazer. Até os objetivos de se livrar das expectativas alheias, de entrar em harmonia com a Natureza, de prolongar a vida, de superar necessidades fisiológicas, por mais encantadores que soem, são referidos de passagem. A lição, não mais do que insinuada, é a de que não são fins em si.

Mais uma vez, referindo-nos às vinhetas, é imprescindível notarmos que o caráter independente e fragmentário das estórias do Imortal serve para afirmar que nenhuma experiência deve ser preordenada dogmaticamente – e tal é o grande frescor que sente o leitor que persiste na leitura do Imortal. A palheta emocional da obra é vasta, o que a distingue no pensamento chinês antigo. Apesar das barreiras culturais, os personagens do Imortal são fáceis de se aproximar, pois são francos para com os próprios sentimentos.

O Imortal vai muito além das vinhetas em que, entre indignação e enlevo, ternura e sarcasmo, as suas anedotas, curtinhas que são, deixam pistas sobre o processo de maturação e maturidade de quem se submeteu a um tipo de disciplina existencial e quem, por meio desta, teve acesso, pelo menos no plano da fantasia, a uma dimensão além da vida mundana – o que, percebemos bem, não mudou tanto assim nos últimos 2500 anos.

Por conseguinte, um dos insights mais valiosos de Zhuang Zhou é o de que não se deve restringir o potencial da existência humana com rótulos, a preço de não sermos tolhidos em nossa tentativa de encontrar, de realizar o “Dao”. Usando um exemplo mais próximo de nós, hoje em dia, quem gosta de filosofia ou se declara um filósofo raramente se dá conta de que, em sua dimensão cultural “original”, o filósofo era pouco mais do que um apelido para quem assumia um estilo de vida meditativa, de aperfeiçoamento moral, que fazia amizades em resposta as próprias inclinações intelectuais e espirituais – havia toda a liberdade para dar um conteúdo àquilo que fazia. Não havia uma instituição chamada de filosofia, com títulos acadêmicos e carreiras profissionais.

O Sócrates, platônico ou xenofontino, que pretendia que a filosofia fosse uma busca pessoal cotidiana, lamentava-se de que as pessoas em geral tratassem dela como um passatempo para o outono da vida, mais uma distinção social para homens de estatuto ou, pior, como conhecimentos monetizáveis em qualquer fase da vida.

No caso chinês, Zhuang Zhou reagia a uma situação ainda mais perigosa, porque a “virtude” – conhecimentos, refinamento, aptidão, compostura, moralidade etc., o termo chinês não possui um equivalente pronto em nossa cultura – era requisito formal para a única via socialmente aceita para o sucesso: uma carreira político-burocrática. A equação era simples: quanto mais alto o seu cargo, mais elevada deveria ser a sua “virtude”. Qualquer pessoa com vivência, chinês ou não, antecipa as contradições e problemas causados por esse ideal. Importa que, no contexto da China antiga, Zhou é singular, pois, de fato, deu as costas para essa única via. Sua busca existencial – seja por motivos estéticos, espirituais ou mera aversão à luta pelo “sucesso” – o projetava naturalmente para além da sociedade. Ele pregava a “desambição”: nem poder, nem riqueza, nem fama. Malgrado serem fins legítimos, como quaisquer outros, não são fins fiáveis. Colocam-nos nas mãos dos outros.

A grandeza de Zhuang Zhou, humana, não ideal, está plenamente plasmada no início da obra, que traz uma alegoria enganosamente infantil sobre a realização humana. Uma fênix gigantesca e uma rolinha minúscula disputam a atenção do narrador. A fênix atravessa o mundo em silêncio num voo cosmológico; a rolinha vive num raio de poucos metros, consciente de ter o que lhe basta. A fênix não percebe a rolinha, enquanto esta parece ter algum desprezo pelos labores da fênix. Sem tomar partido, o texto nos pergunta qual das duas representa “grandeza”. A reação imediata é a de nos concentrarmos na palavra “qual”, comparando as duas, escolhendo entre elas. No entanto, novas estórias sucedem-se, enriquecendo o debate sobre grande e pequeno, dando falsas pistas, deixando falsos testemunhos, de modo que o leitor se sente andando em círculos, perplexo com negações que se sucedem umas às outras. Apega-se a uma visão exclusiva, de “a” em detrimento de “b”, ou vice-versa.

Essa dificuldade de quebrar a casca sem esmagar o fruto me fez abandonar o plano original de fazer observações “objetivas” sobre dificuldades textuais, conceitos filosóficos, detalhes de história, geografia, folclore da China antiga etc, para me concentrar na interpretação “subjetiva” do que a obra quer dizer, tanto no plano das estórias individuais, quanto no plano do que a obra pode ensinar cumulativamente. No caso dessa alegoria fundamental, por exemplo, não há um, mas pelo menos dois “fios vermelhos” conduzindo a direções muitos diferentes – e não contraditórias entre si! Há grandeza na pequenez e há pequenez na grandeza.

Para concluir, o princípio fundamental de minha leitura, e do comentário que preparei para o Imortal, é o de que Zhuang Zhou não se recusa a legar o seu testemunho pessoal – mas o esconde entre sombras e silêncios. Esse é o grande mistério por trás dessa obra que, no início deste texto, tentei representar por meio das vinhetas.

É certo que, no Imortal, com exceção do caso dos ensaios, Zhou nunca fala em primeira pessoa, mascarando a sua onipresença através de personagens puramente fictícias ou de ficcionalizações de personalidades históricas, como Laozi e Confúcio. Sob estas reservas, o texto como um todo possui, tal como o entendo, um movimento coerente, a receita de desenvolvimento intelectual e espiritual de Zhuang Zhou.

Nenhum resumo pode se substituir à leitura integral, com todas as suas repetições e divagações, interpolações e perplexidades. Espero que minha tradução e meus comentários encorajem o leitor a persistir na leitura, fazendo as perguntas corretas e retirando algo de positivo, pessoalmente relevante, dessa experiência.

In Revista Ursula

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