Entrevista MancheteMário Godinho de Matos, embaixador: “Macau será uma peça importante no ‘puzzle’ da Grande Baía” Andreia Sofia Silva - 17 Out 202217 Out 2022 Mário Godinho de Matos / HM Mário Godinho de Matos fez parte do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês entre 1989 e 1991 e recorda um processo diplomático que correu bem, mas que não é hoje estudado e lembrado como devia. Questionado sobre o actual esvaziamento da comunidade portuguesa, o embaixador diz tratar-se de um ponto negativo tendo em conta que as negociações visavam a fixação de chineses e portugueses no pós-1999 Falou do facto de as negociações sobre a transição de Macau terem sido bem-sucedidas, mas lamentou que esse ponto seja hoje desconhecido. É algo que caiu no esquecimento das autoridades portuguesas? Seguramente que não caiu no esquecimento, porque todo este processo foi muito acompanhado aqui, naquele tempo, e é muito relevante no nosso relacionamento bilateral com a China. Creio que no plano académico, por exemplo, poderíamos ter muito a ganhar se falássemos mais nesses tempos. O processo é tão rico e tem tantos aspectos que podem ser agora bem estudados que merecia mais atenção. Como olha para a postura das autoridades portuguesas em relação à RAEM ao fim de todos estes anos? Poderia haver uma maior proximidade? Nos anos 2000 houve uma grande proximidade, sobretudo no plano económico, pois houve muita gente a fazer negócios e a dirigir-se a Macau. Creio que aí o processo de transição cumpriu a sua tarefa, que era garantir ao território o seu desenvolvimento e a modernização ou aperfeiçoamento. A partir de 2019, com a pandemia, houve uma travagem, que é geral, e que se veio a repercutir no território. Falamos de um aspecto particularmente sensível para a RPC que tem a política de zero casos covid, algo que é muito limitativo para a realização de actividades. Temos assistido a cidades paralisadas e isso, de facto, não é bom para o desenvolvimento económico, cultural e social do território. É uma questão universal e que aqui, talvez, tenha tido maior incidência. Há um progressivo desaparecimento da comunidade portuguesa em Macau. É um ponto negativo tendo em conta as negociações que decorreram no âmbito da transição? Sim. O grande objectivo das negociações, que se prolongaram durante 11 anos, e tudo o que serviu de base à Declaração Conjunta, era dar garantias à população, aos portugueses que quisessem ficar em Macau e os que sentissem vontade de lá ir, bem como de os fixar. Veremos se quando a pandemia estiver mais resolvida se tudo poderá ficar como na situação anterior ou até melhor. Mas o objectivo era mesmo o de fixar a população portuguesa e também chinesa e dar ao território todas as condições para se desenvolver e aperfeiçoar as relações no âmbito político. Disse que houve falhas no processo de negociação, nomeadamente ao nível do pagamento das pensões dos funcionários públicos. Que outros aspectos menos bons pode apontar? Nos três primeiros anos do Grupo de Ligação fizemos a adesão aos acordos internacionais, entre outras coisas. Estávamos numa fase muito inicial do processo e, digamos, o objectivo era criar condições para que tudo aquilo funcionasse. Lembro-me do gabinete de tradução jurídica, um departamento importantíssimo para casar duas legislações. Havia obstáculos de todo o tipo e questões que precisavam, às vezes, de ser clarificadas. A questão da data [para a transição] arrastou-se muito tempo, porque os chineses pretendiam um processo simultâneo com Hong Kong e isso, para nós, era uma questão de princípio. A questão da data foi difícil de negociar. Para os chineses a barreira era 2000, e por isso é que encontramos esta data [20 de Dezembro de 1999], que fosse perto do ano 2000 e não colidisse com a data de Hong Kong. Foi uma negociação intensa, com uma flexibilização da parte chinesa, que tinha interesse em que tudo corresse bem, sempre tendo Taiwan como objectivo final. Nesse sentido, como olha hoje para a implementação do conceito “um país, dois sistemas”? Vamos ter de acompanhar muito o que está para vir. No plano dos princípios o sistema continua vigente e esperamos que assim aconteça. Mas essa caminhada para Taiwan tem tido algumas dificuldades de percurso e não está claro que passos serão dados nesse sentido. A integração de Macau na China, tendo em conta os vários projectos de cooperação regional, vai ser mais rápida do que se esperava? Penso que sim, sobretudo no plano económico, porque o dinamismo da região é de tal ordem que me leva a crer que, na integração da zona da Grande Baía, Macau andará à frente e será uma peça importante nesse puzzle. Aula aberta na UL para alunos de Ciência Política O HM falou com Mário Godinho de Matos no contexto de uma aula aberta que o embaixador deu no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa na última sexta-feira. Perante uma plateia de alunos de Ciência Política, o responsável começou por dizer que o “processo de transição de Macau teve os seus altos e baixos, gerou críticas, mas a verdade é que foi um exercício diplomático específico, curioso, numa zona que nos dizia muito, pois estávamos ali há cinco séculos, e que se resolveu com algum êxito”. “Isso é de assinalar e talvez mereça ser mais conhecido”, acrescentou ainda, lembrando que o caso de Macau foi em tudo diferente da restante descolonização portuguesa no pós-25 de Abril, um “processo totalmente descontrolado”. Mário Godinho de Matos lembrou que houve três pilares essenciais neste processo de transição, nomeadamente a língua, os funcionários públicos e a legislação. Acima de tudo, “não faltavam meios, eu tinha luz verde para contratar o número de técnicos necessários para as negociações”. “Os chineses queriam que a transição se fizesse ao mesmo tempo da de Hong Kong, mas não queríamos um processo igual, pois os territórios eram diferentes e havia especificidades que tinham de ser preservadas, tal como a boa relação com os chineses e a nossa presença histórica de 500 anos.” Que futuro? Mário Godinho de Matos afirmou que o caso de Macau poderá agora voltar a ser mais falando tendo em conta a questão de Taiwan, uma vez que o princípio “um país, dois sistemas”, pensado por Deng Xiaoping, foi estabelecido para tratar a situação da Ilha Formosa. “Deng Xiaoping pensou que com a institucionalização deste conceito único haveria confiança, da parte das autoridades de Taiwan, e seria um passo importante para as negociações com a Formosa. O comércio entre a China e Taiwan é intensíssimo, mas, a verdade é que, no plano político e social, vemos que há uma cada vez maior desconfiança entre as duas partes e não sabemos muito bem como isto vai terminar. O que se esperaria é que alguma negociação fosse possível à semelhança do que aconteceu com Macau e Hong Kong”, adiantou. O embaixador não deixou de destacar a existência do Fórum Macau que “envolve a China, Portugal e os PALOP” e que, além da ligação bilateral específica [entre a China e Portugal], traz “um desenvolvimento importante”. “É uma iniciativa exclusivamente chinesa e não deixa de ser curioso que a China tenha encontrado essa via para se relacionar com os países de expressão portuguesa e com Portugal”, concluiu.