V – Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau

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V – Do reaproveitamento de infra-estruturas de transporte
(continuação de dia 22 de Agosto)

 

 

A palavra infra-estrutura significa algo que é materializado pela sua construção ou organização (uma estrutura), mas que possibilita ou integra funcionalidades essenciais em que uma população se suporta.

O reaproveitamento de infra-estruturas poderá ter em vista o prolongamento da sua vida económica no sentido da efectiva utilidade, que poderá ser tanto a original, como outra emergente, todavia diferente, que possa tirar partido da estrutura entretanto tornada obsoleta.

As situações mais recorrentes associadas a reaproveitamento de infra-estruturas de transportes são as ferroviárias com exemplos que cobrem todo um leque situações, possibilidades e soluções.

No caso de Berlim várias estações desactivadas reentraram em funcionamento com a unificação da cidade.
No caso de Viena, a linha de cintura, a parte que não fora reconstruída no pós-Segunda Guerra Mundial, e cujas estações foram desenhadas por Otto Wagner no período da Arte Nova Vienense, tiveram a sua reactivação em 1989, já integradas no actual sistema de metro urbano.

Já no caso de Roterdão, os viadutos urbanos que serviam linhas entretanto desactivadas, construídos na mesma tradição industrial de abóbadas de tijolo, passaram a ter esses vãos ocupados por serviços, principalmente de restauração, e os tabuleiros equipados com esplanadas e arranjos paisagísticos, já numa óbvia estratégia de embelezamento, complementados com outras ligações aéreas e dotando a cidade de uma circulação pedonal alternativa e elevada. Ou Roterdão não fosse uma cidade dos Países Baixos, mesmo estando dotada de uma forma urbana resiliente, e equipada com grandes bacias subterrâneas de retenção.

Por sua vez uma infra-estrutura integra outras estruturas, a que já chamamos equipamentos. No caso de uma infra-estrutura ferroviária, os mais notórios são sem dúvida as estações a que, desde a génese da construção de estações ferroviárias, sempre se dedicou grande cuidado arquitectónico.

Muitos desses edifícios encontram-se classificados, muitos serviram linhas entretanto extintas, e muitos passaram a ser insuficientes para servir exigências actuais de funcionamento. Foram por isso ampliados ou complementados com outras estruturas, ou passaram a albergar outras utilizações quando deixaram de servir para as finalidades iniciais.

Sempre se dirá que distanciar ou desarticular um edifício da sua finalidade original, será lançar mão de um recurso necessário, mas constituirá sempre prejuízo para a sua integridade, mesmo tendo em vista a sua preservação, e presentes sólidos elementos de interpretação.

Existe ainda uma nova tipologia de reaproveitamento de infra-estruturas associadas a operações imobiliárias de que possivelmente o caso mais exemplificativo seja Cheonggyecheon em Seoul.

Trata-se de um arroio ou riacho urbano que atravessava a cidade e que na década de 1940 começou a ficar obstruído por grandes quantidades de lixo e efluentes de esgoto que aí eram despejados.

As margens do arroio eram ocupadas por comércio de baixo escalão e as soluções para o local foram primeiro o encanamento do arroio e mais tarde a construção de uma viaduto rodoviário expresso.

Nenhuma dessas medidas trouxe qualidade urbana e a mesma zona da cidade manteve-se até ao início do Século XXI expectante de melhor qualificação.

A solução surgiu sob a égide do modelo do neoliberalismo económico em que o potencial económico dos terrenos em causa dependia da requalificação de uma infra-estrutura, ou seja, de um bem público, e que o mesmo potencial justificava o encargo dessa qualificação, ao ponto de a mesma poder ser custeada pela iniciativa privada.

A iniciativa passou pela remoção do viaduto rodoviário e o arroio voltou a ser descoberto para ser ambientalmente qualificado. O curso do arroio passou a existir num canal, complementado por margens para trajectos pedonais, com grande detalhe paisagístico e numa óbvia estratégia de embelezamento. Da medida resultou um novo bairro próspero e elegante, marcado por um forte efeito de gentrificação.

São estes elementos de escrutínio que caracterizam situações diversas de reaproveitamento de infra-estruturas urbanas, nomeadamente de transportes, que no cenário local servem o destino da Ponte Governador Nobre de Carvalho ou Ponte Macau-Taipa (em chinês: 澳氹大橋), para a qual não é descabido uma classificação de património cultural.

Qualquer classificação nessa categoria pressupõe uma base de justificação onde se invoque a relevância do objecto de qualificação.

Neste caso a Ponte Governador Nobre de Carvalho é atribuída ao Eng.º Edgar Cardoso, conhecido por estruturas notáveis que se pautaram por modelos de cálculo que não eram nem correntes, nem consentâneos.

Foi planeada como uma ponte rodoviária que liga a Península de Macau à Ilha da Taipa, e função que ainda exerce, entretanto complementada pela Ponte da Amizade e a mais recente Ponte de Sai Van.

O comprimento total da ponte é de cerca de 2 570 metros, teve o início da construção em Junho de 1970 e aberta à circulação em Outubro de 1974, sendo à época considerada a ponte contínua mais longa do mundo. O ponto mais elevado do tabuleiro atinge 35 m acima do nível do mar, permitindo a passagem de navios, mas não da Sagres que sempre acostou no Porto Exterior.

Tem uma particularidade na sua utilização. Os passageiros num carro que se desloque a uma velocidade aproximada de 50Km/h consegue ver a paisagem através das guardas laterais que ficam transparentes, onde as barras verticais desaparecem por efeito estroboscópico.

A interpretação do partido plástico da ponte está também associada à evocação de um dragão com a cabeça no Hotel Lisboa Macau, que já existia à data em que a ponte foi construída, e com a cauda na Ilha de Taipa Pequena onde mais tarde, em 1981, teve uma intervenção escultórica atribuída a Dorita de Castel-Branco, figurando pela encosta essa interpretação.

A concepção de uma ponte pauta-se por elementos essenciais e precisos e assim deve permanecer depois de construída. Nisso, uma ponte é muito diferente dos edifícios que habitamos, onde nem tudo é absolutamente essencial, quer para a sua construção, quer após a sua construção, nem muitos dos elementos se obrigam a uma posição e fixação precisas.

Na concepção de uma ponte importa a finalidade a que se destina, onde outras não previstas foram necessariamente excluídas do modelo de cálculo e do seu apetrechamento.

Assim, sobre a ponte Governador Nobre de Carvalho, dúvidas não se colocam sobre o potencial para a sua classificação. Apenas não se vislumbra onde recai a necessidade do seu reaproveitamento. A ponte é uma ponte rodoviária, foi assim concebida, é assim que é utilizada, e que poderá continuar a ser utilizada do mesmo modo, enquanto existirem veículos motorizados com rodas de borracha.

Teve a sua pressão aliviada com a construção das outras pontes, com que presentemente partilha o tráfego entre Macau e a Taipa, e sobreviveu à agressão do período que mediou a entrada em operação do Porto de Ka-Ho e a construção da ponte da Amizade, quando não existia alternativa para o transporte de cargas pesadas para Macau.
Não ocorre outras necessidades prementes que a ponte possa melhor servir, prescindindo do seu contributo para a circulação rodoviária que está longe de ser obsoleto .

Sendo certo que, se sobre o mesmo objecto deve recair uma classificação de património cultural, não será certamente em conjugação da modificação da sua utilização.

Sequer o reaproveitamento pedonal de um trajecto obrigatório ao longo de 2 570 metros, sem possibilidade de dele desistir a meio, se afigura uma finalidade premente.

Ou mesmo uma estratégia integrada, com utilização de lazer ou de embelezamento paisagístico se afigura pacífico numa ponte cuja concepção se pautou por elementos essenciais e precisos, onde abastecimentos e saneamentos não foram previstos, as rajadas de vento registam-se aí as mais fortes, e outras fixações que aí se fizessem gerariam impulsos não previstos na estrutura.

Também não ocorre que outros aproveitamentos venham aí gerar contrapartidas que motivem a iniciativa privada e a gentrificação urbana. Em verdade, a ponte é a única ponte inclusiva da RAEM, algo de que cada vez temos mais falta em ordenamento urbano. Admite que os afoitos a façam a pé, pois 2 570 metros com um troço de subida íngreme não é pêra doce.

Serve também alguns desses afoitos do segredo que têm guardado, de que é no cima da ponte o melhor local publicamente acessível para ver fogo de artifício sobre o estuário.

Segredo agora partilhado, para que não se lembrem de o proibir, e para que nesses dias, e nessas horas, apenas se fixe um contingente de acesso e se limite a circulação a uma faixa de emergência.

Se algum sentido nostálgico advém da utilização actual da Ponte Governador Nobre de Carvalho, isso é fruto exactamente da experiência que resulta das condicionantes actuais de tráfego, que repuseram fluxos que estão aquém de limites de exaustão, muitos semelhantes aos registos cinematográficos que existem de época.

(com continuação)

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