Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau II – Da morfologia urbana

(continuação de dia 1 de Agosto)

Mário Duarte Duque*

A planificação de infra-estruturas de transporte, tal como as conhecemos hoje, não foi, nem é, alheia à morfologia dos territórios.

Isso foi resultado tanto da viabilidade técnica, como de eficiência e economia de execução, a que também importaram critérios paisagísticos.

Efectivamente, na escolha do traçado, fosse uma estrada ou um caminho de ferro, a contrapartida é muito maior se, para além das vantagens da acessibilidade e da construção, tirasse também partido de atributos de paisagem, tal como as margens de um rio, ou o avistamento de uma montanha, como recorrentemente acontece.

Quando transpomos o mesmo para o espaço urbano, o que se altera é que os atributos de paisagem não são só resultado da morfologia natural, mas também da morfologia construída. Como até as próprias infra-estruturas de transporte no espaço urbano têm capacidade de induzir outras novas morfologias, ou de elas próprias serem o novo elemento morfológico.

Assim, e da mesma maneira que a RAEM não tem um Plano Paisagístico Geral para assistir ao Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres, no que se prende com a construção de infra-estruturas de transportes, vai ter de se munir das mesmas avaliações paisagísticas e de salvaguarda, que se discutem caso a caso, tal como se faz com a emissão de Plantas de Condições Urbanísticas (PCUs), a respeito da definição da volumetria de ocupação dos lotes. Como acontece já na vigência de um Plano Director, mas ainda na ausência de planos de pormenor, que dispensariam tais definições avulsas, sujeitas por isso ao escrutínio do Conselho do Planeamento Urbanístico.

Na história do urbanismo, poucos foram as situações em que a cidade foi planeada paisagisticamente, visualmente ou mesmo pictoricamente, porque a definição racional e abstracta da cidade, mesmo apenas planimetricamente, já comtemplava elementos com capacidade de gerar atributos visuais, cujos efeitos era conhecidos, e possíveis de prever.

A necessidade de intervir visualmente ou pictoricamente na paisagem urbana foi, na maior parte dos casos, uma consequência da falha, ou do descontrolo, dos métodos convencionais de planeamento, e nas situações onde em causa estavam valores achados histórica ou socialmente sensíveis. Em certa medida, o instrumento de controlo e planeamento do skyline de uma cidade pode considerar-se nessa categoria.

Em Macau foi possivelmente exemplo dessa forma de intervir visualmente na cidade, a edificação realizada recentemente no sopé da escadaria de S. Paulo, que não foi resultado de uma projecção pictórica, mas antes de reconstrução pictórica, cuja informação foi possível retirar de um desenho de Chinnery.

Retomando o caso das infra-estruturas de transporte, um dos aspectos de maior impacto visual resulta das situações em que é necessário construí-la elevada.

O impacto é facilmente antecipável e a reacção é espectável, como efectivamente aconteceu quando se definiu que a Av. da Praia Grande iria ser sobrevoada por um viaduto, e que só era essa a alternativa possível para servir o centro com um transporte automático, tal como fora previsto de início.

Mas também, como para tudo o que acontece em contexto, o resultado é sempre fruto da selecção dos elementos de composição, da sua caracterização ou tratamento, assim como da sua posição.

Um viaduto avistado de perto, mas suficientemente longe da paisagem, serve de moldura a essa mesma paisagem. Mas um viaduto, quando é avistado mais de longe já corta ou bloqueia a paisagem que lhe segue.

Ou seja, na definição paisagística da cidade, importa saber onde os observadores se encontram ou os lugares que frequentam, ou mesmo definir posições ou circuitos privilegiados de observação, articulados com as novas infra-estruturas a erigir.

Já com as infra-estruturas de transporte de superfície, a questão que mais se coloca é a resulta da sua hierarquia e da intensidade do seu tráfego, com outras necessidades de atravessamento.

Por via da nova morfologia de aterros da RAEM com características de arquipélago, acrescem novos atributos paisagísticos litorais. Aqueles que conferem às edificações notáveis efeitos visuais de reflexos na água, proporcionam aos habitantes locais ambientalmente mais aprazíveis para residir, assim como para lazer dos utentes em geral.

Mas também permitem também construir vias marginais de tráfego mais eficiente. Vias que são de difícil atravessamento de nível, impossíveis no caso de circulações ferroviárias. Essas apenas possíveis atravessar nas situações de eléctricos urbanos, que tanto podem circular a alta velocidade em vias exclusivas, como a muito baixa velocidade em zonas pedonais, mas que não foram a opção de transporte automático da RAEM.

Tendencialmente as ocupações urbanas litorais caracterizam-se por orlas paralelas com especialidades funcionais diferentes, muitas vezes ao longo de uma encosta.

No passado a mobilidade entre zonas distintas da cidade era menos necessária, e os percursos dos habitantes faziam-se quase exclusivamente em ruas perpendiculares ao litoral, através dessas orlas paralelas. A cidade dependia dessas ruas também para assegurar a higiene do ar, fazendo uso das brisas que circulam entre a terra e a água, e que alternam de direcção ao longo do dia e da noite.

Muito do que hoje é apreciado nas ocupações litorais, foi destruído em muitos outros locais litorais por via da intensificação de circulação marginal. Boa demonstração disso são as cidades do Porto e de Lisboa, respectivamente.

As vias marginais de tráfego intenso é uma tradição que se instaurou no urbanismo contemporâneo, originariamente por necessidade e por ser recurso mais fácil de lançar mão, mas que nunca foi elemento originário de modelos urbanísticos.

Ponderadas todas estas situações, afigura-se que os eixos de circulação principal que o Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau propõe para circulação marginal, os mesmos coexistiriam mais favoravelmente se instalados nas vias paralelas mais interiores desses aterros, onde poderiam existir até elevados com reduzido impacto paisagístico, possibilitando desejáveis e mais tranquilos fluxos transversais de acesso local ao litoral desses aterros, para que aí se pudessem localizar ocupações e equipamentos em condições ambientalmente mais aprazíveis, com novos e melhores atributos paisagísticos de frente litoral, e menos perturbados pelo tráfego.

De outra forma, os novos terrenos da RAEM nascem assim já murados em relação à sua frente litoral, o mesmo que aconteceu em outras cidades, mas por falta de alternativas e em resultado das limitações de um território já consolidado.

Ainda para o que se prende com o transporte automático da RAEM, o metro ligeiro, importa que se instaurou um dado fundamental e indiscutível, i.e. instalou-se um dogma, do qual resulta a impossibilidade dessas instalações integrarem ou se conjugarem com quaisquer outras finalidades.

Há muito que em Macau se admite que um edifício possa albergar mais do que uma finalidade, mas a finalidade “transporte” encontra-se disso afastada.

Disso resulta que as instalações de transporte tenham que existir tanto em instalações exclusivas como em espaço público.

Efectivamente toda a parafernália que uma instalação de metro requer é grande, e a sua construção na Taipa teve necessariamente que ocupar o espaço público existente, em zonas urbanas já consolidadas.

O modelo continua o mesmo, tanto que, que os novos aterros tiveram o seu loteamento definido, antes de definidas as suas infra-estruturas, nomeadamente de transportes, que necessariamente irão ter de ocupar o espaço público que resultou dessas operações de loteamento, e onde não foram previstas.

Efectivamente as estações do metro ligeiro já realizadas na Taipa não puderam à data albergar qualquer finalidade comercial, mesmo contribuindo para a solvência do serviço, sequer mesmo instalar painéis solares, sob pena de entrar em conflito de interesses com a própria concessionária que alimenta a RAEM de energia eléctrica. Como também o modelo de exploração não permite que as estações possam existir em edifícios com outras finalidades.

Já aqui ao lado, em Hong Kong, as estações de metro tanto são génese, como integram novos polos habitacionais e comerciais, assim como, quando foram construídas no tecido urbano já consolidado, não foi necessário ocupar o espaço público, sequer para saídas à superfície, as quais foram criadas em lotes já existentes, nos segmentos do circuito subterrâneo,

A questão importa e está sujeita a escrutínios que tanto são de sustentabilidade como de gestão de bens públicos.

Espaço público, assim como urbanização, são bens/recursos públicos. Em territórios como Macau, onde a alta densidade impera e o espaço público é proporcionalmente escaço, a gestão do espaço público tem que ser eficaz.

A ocupação do que é escaço, mas que simultaneamente é de utilização exclusiva, não se afigura eficaz, sequer sustentável, se o bem em causa for escaço.

Em grande medida, é também este modelo de concepção e de exploração o que inviabiliza servir o centro da cidade pelo circuito de metro, uma vez que não é possível disponibilizar, sequer sacrificar mais, o espaço público do centro da cidade que este modelo requer. Quando tudo o que são instalações de um metro ligeiro, para as quais não existe alternativa, são apenas as linhas e os cais, pois tudo o mais, são átrios, acessos e instalações técnicas, cuja existência se pode negociar nos lotes já existentes.

Em verdade, no princípio do sec. XX foi possível estabelecer uma comunicação directamente entre o cais de passageiros no Porto Interior e o Leal Senado (a Av. de Almeida Ribeiro), da mesma maneira que outras cidades rasgaram boulevards das estações de caminho de ferro ao centro da cidade. Não ocorre porque não é possível, ou não haja interesse, em dotar a RAEM de uma estação de metro ligeiro que sirva o centro da cidade.

(com continuação)

 

*arquitecto

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