Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau

I – Dos pontos de partida

Mário Duarte Duque*

De entre as perspectivas de futuro a que o surto pandémico se substituiu e retirou visibilidade, encontra-se o Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau, colocado a consulta pública, a qual terminou no próximo dia 31 de Agosto.

Ou seja, algo de que a RAEM necessariamente depende, e logo no primeiro dia em que os “habitantes” da RAEM deixem de estar confinados (importa a designação de habitantes porque é a única que representa quem efectivamente aqui vive).

Quando as prioridades se substituem, quase se anulam, mas que inevitavelmente se retomam, isso obriga a um esforço de reconstituição do que efectivamente tiveram como ponto de partida.

O Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau (diga-se RAEM) faz parte de um conjunto de planos temáticos ou de especialidade, que não tendo sido já introduzidos no Plano Director, surgem necessariamente a jusante. Devem pautar-se pelo comando do Plano Director, e são necessariamente sua consequência.

Partindo daqui, extrai-se naturalmente que, de um Plano Director, que não se interessou pelo centro da cidade, não apenas o Centro Histórico, mas antes todos os sítios que se encontram no topo da hierarquia de uma teoria urbanística de “lugares centrais”, e que se debruçou predominantemente sobre as periferias e sobre a integração regional, era espectável que ao subsequente Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau, também não interessasse o centro da cidade, como não interessou.

A razão por que assim aconteceu pode tanto ter resultado de o Plano Director não ter formulado as directrizes necessárias para o centro da cidade, como essa ausência ser a própria directriz. 

Na história das cidades, as primeira grandes infra-estruturas de transportes urbanos, fossem pontes, fossem caminhos de ferro, tiveram como prioridade a acessibilidade aos centros.

Desse propósito não se consegue distinguir se na altura o sentido foi de afirmação desses centros, ou já um dependência de apetrechamento funcional. Sabe-se que esses centros se reforçaram com infra-estruturas diversas, nomeadamente de transportes, e admite-se que se teriam extinguido funcionalmente se esse apetrechamento não tivesse acontecido.

A determinação dessas iniciativas mede-se também pela complexidade e pelo engenho do que foi realizado. Os centros são morfologicamente e funcionalmente complexos, as solução são necessariamente engenhosas, a perturbação com o curso dos trabalhos é grande, e as soluções são necessariamente visionárias, ou seja, devem incluir tudo o que se estima que os centros venham a precisar, mesmo que num futuro distante, porque não é viável repetir a mesma perturbação.

Ou seja, deve comtemplar muito mais do que foi possível antever e realizar nos dois últimos grandes estaleiros que empataram o centro da cidade, o Tap Seac e a praça Ferreira do Amaral.

Deve contemplar muito mais que recentemente assegurou o metro ligeiro da Taipa, que não teve em consideração uma pertinente distribuição demográfica e funcional, ou preencher o trinómio residência/trabalho e educação/lazer, sem o qual os habitantes de uma cidade, podendo ter um transporte privado, vão continuar a recorrer ao automóvel.

Sequer teve interesse em assegurar desde a fase inicial o que já estava assegurado, i.e. a travessia entre Macau e a Taipa, já prevista na construção do tabuleiro inferior da ponte de Sai Van (diga-se, a única infra estrutura verdadeiramente visionária desde o estabelecimento da RAEM).

Travessia que teria logo de início, em abstracto, e sem necessidade de mais estudos demográficos de pormenor, a garantia de poder servir toda a população pendular da Península de Macau e da Ilha da Taipa e de substituir muitas carreias de autocarros que fazem a mesma travessia.

Outra realidade ausente do Plano de Transportes prende-se com o cenário real de que a RAEM é efectivamente inundável.

A partir do momento em que o Executivo da RAEM assumiu que a Região deve necessariamente conviver com inundações e estabeleceu protocolos de avisos e de intervenção para fazer face a essas situações, importa a planificação dos serviços e das rotas de transportes, por forma a que alguns  se admitam suspensos em situações de inundação, mas outros se mantenham e assegurem que a população se mantenha activa. Algo que constituiria um aperfeiçoamento da resiliência da RAEM nessas situações de perturbação, i.e. a capacidade de a RAEM se manter funcional, mesmo nessas situações.

As inundações podem corresponder a níveis diversos de perturbação onde não importa apenas que a população tenha escapatórias para acederem a pontos de refúgio elevados, mas também que toda a RAEM esteja coberta por caminhos de resgate nessas situações.

Sabe-se que a geografia ocidental da Península de Macau tem refúgios de inundação em torno da Colina da Penha, e que a cidade oriental tem esses refúgios principalmente em torno da Colina da Guia. 

Menos atentos estamos a que a ligação elevada entre essas duas colidas correu no passado por uma linha de cumeeira que correspondia à actual Rua Central, e que se estendia até ao largo da Sé. Essa morfologia geográfica foi desmontada e interrompida para a construção da Av. de Almeida Ribeiro. Razão por que a Rua Central passou a ser íngreme e, do lado oposto, se sobe hoje por escadas para a Rua da Sé. Ou seja, as colinas ficam isoladas quando os níveis de inundação atingirem o Leal Senado.  

Acontece que todos os hospitais da Península de Macau estão em torno da Colina da Guia e que não existe nenhuma circulação elevada que cubra, ligando e acedendo a todos os lugares de refúgio das colinas. Os viadutos de Macau tiveram por alcance a eficiência rodoviária com atravessamentos desnivelados, mas não integram uma estratégia de resgate em situação de inundação.

Mais sério é o facto de que no Território de Macau nunca se construíram hospitais em zonas baixas ou de aterro, porque isso é visto como factor de vulnerabilidade.

Quando se decidiu edificar as primeiras unidades hospitalares em aterro, nomeadamente no aterro do Cotai, também nenhuma estrutura elevada foi prevista que articulasse essas unidades hospitalares com circuitos de resgate ligados elevadamente aos circuitos nas encostas das ilhas da Taipa e de Coloane.

Escrutinadas as questões iniciais que se prendem com a longevidade das infra-estruturas, a hierarquia dos lugares e a morfologia do território, é igualmente questão inicial a lógica funcional por que se pauta um sistema de transportes.

A tradição dos circuitos de autocarros foi dotar as rotas de uma autonomia que tanto serve as distâncias como a distribuição local. Não assenta num sistema de eixos de rotas em que o circuito individual do passageiro é feito pelo próprio, por vias das correspondência que efectua entre rotas diversas e que lhe são colocadas à disposição por via de uma planificação que conhece as pertinência dessas correspondências.

A vantagem de uma lógica de circuitos articulados em correspondências permitiria que os passageiros não seriam mantidos em circuitos de distribuição que não lhes interessam, e apenas fariam os segmentos mais directos que os levam aos seus destinos.

A vantagem seria também para quem não está familiarizado com as rotas dos autocarros, nomeadamente os visitantes, poderem circular na cidade com um gráfico simplificado de rotas que se exibissem nas paragens, pois é isso que é recorrente noutras cidades, em vez de colunas e colunas de rotas individuais.

Gráficos onde facilmente se identificariam os nós de correspondência, a que corresponderia um gráfico no interior dos veículos, que identifica as paragens ao longo de um eixo, onde em cada paragem, por sua vez, se identificam as correspondências que aquela paragem permite, e anunciadas pelas mensagens áudio que se sucedem ao longo das rotas.

Desta lógica resulta necessário outros tipos de apetrechamentos. As correspondência entre rotas devem ser sincronizadas com intervalos próximos, devem ser confortáveis por via de autocarros com o ingresso ao nível dos cais, e devem ser resguardadas à intempérie.

(com continuação)

*arquitecto

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