Animais fantásticos da China XVIII – O Juru

Ana Jacinto Nunes

É recorrente na sabedoria antiga a importância atribuída à face humana. A fisiognomonia – ramo do saber que relaciona os traços físicos da face com o carácter – surgiu em diversas civilizações, da grega à árabe, da hindu à chinesa, passando pelo Renascimento, onde fez as delícias de artistas como Leonardo da Vinci ou Charles Lebrun.

A face humana desperta noutro ser humano um complexo de emoções inextrincável. É caso para se dizer que quando se nos depara uma face “as sortes estão lançadas”, na medida em que é imprevisível que sensações, que sentimentos, que pensamentos nos atravessarão a mente e quanto isso poderá mudar as nossas vidas. Uma certa face pode ser, para cada um de nós, na ocasião certa, um Rubicão. E nada na nossa existência ficar como antes.

Ora 500 lis além do monte Tianyu, que se encontra vedado a visitantes por razões mal esclarecidas, existe uma montanha cujo nome não é referido, onde habita um estranho pássaro com três pernas e a cabeça branca. Contudo, para enorme espanto de quem o vislumbra, este pássaro, a que chamam juru, apresenta uma face humana.

Se o juru tivesse a dimensão de uma águia, seria algo realmente bizarro de se ver, pois a sua face teria o tamanho aproximado da face de um homem. Porém, o juru não excede o tamanho de um pato vulgar, não sendo por isso um bicho ameaçador, apesar das suas inusitadas feições. Aquela pequena face humana, dependurada de um pescoço de pato invoca uma tal miríade de sentimentos, do horror à compaixão, que ninguém é capaz de o perseguir e ainda menos de o matar. É desconhecido por isso o sabor da sua carne.

De igual modo, causa algum espanto que nenhuma parte de um tão peculiar animal não seja entendida como útil para as magias dos xamanes ou para a confecção de mezinhas medicinais.

Existirá, contudo, um rumor sobre um imperador muito antigo, cujo filho sofria de terríveis aflições mentais, que terá servido ao seu herdeiro uma sopa de juru, na esperança, jurada por um feiticeiro das margens do rio Amur, de uma cura que permitisse ao alienado aceder ao trono.

Tal não haveria de suceder, pois o jovem príncipe não só não terá apresentado melhoras depois do horrendo manjar, como se afundou numa profunda melancolia da qual foi impossível arrebatá-lo. O feiticeiro procurou refúgio junto das tribos Miao, no oeste da China, e nunca mais dele se ouviu falar. Talvez por causa de este rumor, à mesa dos camponeses, ainda hoje se assustam as crianças dizendo-lhes que vão comer sopa de juru, na qual uma cabeça humana emerge quando a panela é mexida. “A quem vai hoje sair a cabeça?”, perguntam as avós, divertidas com as expressões de asco e horror nas caras de seus aflitos netos.

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