Entrevista ManchetePaulo Canelas de Castro, académico: “Conflito na Ucrânia obriga UE a testar limites” Andreia Sofia Silva - 11 Mai 2022 A Declaração Schuman, que marcou o arranque do que é hoje a União Europeia, foi assinada há 72 anos. Paulo Canelas de Castro, especialista em Direito Internacional e Europeu, analisa o projecto europeu que actualmente enfrenta a situação caótica da guerra na Ucrânia, assim como a chegada ao pelotão da frente de novos actores internacionais, nomeadamente a China Tendo em conta os objectivos iniciais, como encara a evolução do projecto europeu desde a sua génese? A União Europeia (UE) é hoje uma realidade incontornável do nosso mundo A Declaração Schumann visava reconciliar duas grandes potências em conflito durante anos, construir um mundo de paz e garantir a prosperidade económica e social. Julgo que a trajectória da União Europeia (UE) e dos Estados-membros nestes anos é a prova de que essa aspiração foi conseguida. A Europa vive num mundo de paz e não voltou a haver guerra dentro do espaço da UE, que se tem alargado. E em termos económicos, como avalia o projecto? Saiu-se de uma situação de grandes dificuldades no pós-II Guerra Mundial para um cenário em que existe o maior mercado interno do mundo. Isso explica que todos os Estados que saíram de regimes autoritários tenham procurado tornar-se membros da UE. Claro que permanece sempre a necessidade de revigorar o projecto europeu, mas parece-me imperioso celebrar essa mensagem inicial de paz que deu influxo ao projecto europeu. No contexto China/Estados Unidos, considera que a UE conseguiu manter a sua posição estratégica? Há muito que a UE está confrontada com um mundo diferente. A consagração em 1992 da própria noção de UE, diversa das precedentes Comunidades Europeias, é credora dessa interpelação fundamental. Em reacção à queda do Muro de Berlim, o projecto europeu deu um salto qualitativo evidente, tornando-se um projecto político também, que respeita aos cidadãos europeus, que interpela e procura mobilizar e integrar cidadãos, além de prosseguir a vertente de integração económico-social mais plural e exigente. A UE confronta-se hoje com uma realidade geopolítica diferente, mais complexa do que a vivida durante a Guerra Fria, nomeadamente com outras potências a emergir, como a China. Este contexto global cria uma nova tensão para a qual a UE procura encontrar soluções. Hoje, acontecimentos ou tendências internacionais recentes interpelam a UE a repensar-se. Em que sentido? Assim se explica, por exemplo, a adopção recente da uma bússola estratégica em que configura orientações para os novos desafios de um mundo em mudança. E há que tomar posição relativamente a essa situação nova, profundamente perturbadora do quadro de segurança estabelecido, que é uma guerra às portas da UE. Ainda por cima desencadeada por um grande Estado que partilha a geografia europeia. Um Estado que, durante algum tempo, se pensou honraria a sua responsabilidade especial consagrada na Carta das Nações Unidas, que após a Guerra Fria ensaiou uma estratégia de alguma aproximação aos países ocidentais, mas que agora não coloca em crise todo esse quadro de segurança da Europa. Na sua óptica, qual o papel da UE neste contexto? A guerra na Ucrânia interpela a UE a regressar e reafirmar os seus valores, a dar resposta a questões práticas imediatas, como o enorme fluxo de refugiados, ou ainda a questões politico-diplomáticas como a procura da Ucrânia por um ancoramento no horizonte europeu. Isto tendo em conta que a Georgia e a Moldávia também pediram a adesão a UE por viverem situações de proximidade com a realidade que a Ucrânia já vivia antes da guerra. A entrada da Ucrânia na UE é possível, juridicamente, neste contexto? Que implicações terá? Os critérios de adesão à UE exigem que o Estado candidato tenha uma economia de mercado funcional e seja um Estado de Direito. Há depois procedimentos que têm de ser cumpridos para provar o preenchimento destes requisitos, nomeadamente estabilidade e segurança. Procura-se que a adesão não conduza a conflito ou instabilidade no quadro da UE. Num tal quadro mais largo de exigências, esta pode ser uma condição difícil de preencher. Os Estados-membros terão depois de tomar uma posição, conjuntamente com a instituições europeias. Há indícios de uma compreensão muito aguda por parte dos europeus de quanto a situação na Ucrânia os interpela. Temos uma tomada de posição institucional, sobretudo da parte da presidente da Comissão Europeia, que reconhece a legitimidade da Ucrânia em prosseguir esta aspiração. Teremos de ver como os líderes dos Estados-membros reagem. Outros factores concorrem em sentido divergente, tal como o facto de algumas candidaturas à UE passarem por um processo demorado até obterem resposta. Muito se tem falado da necessidade de a UE ter uma nova estratégia em matéria de defesa. Qual a sua posição? A UE não era, inicialmente, um projecto de defesa ou militar. O fim da Guerra Fria teve o efeito paradoxal de fazer a UE perceber que a dimensão política também era importante e que na reconfiguração do mapa geopolítico, com a dissolução da URSS e a reconfiguração do mapa da Europa, teria de assumir uma vertente de segurança e defesa. Isso explica que a UE após Maastricht e, sobretudo o Tratado de Lisboa, tenha assumido uma política externa comum onde o vector defesa que tem crescido ao longo dos tempos. Este conflito na Ucrânia vai obrigar a UE a testar os seus limites e a pensar em termos inovadores como é que prossegue este vector num quadro mais hostil e menos estável. Muitos Estados na UE têm uma relação histórica com o centro russo da [antiga] URSS que trazem este tema para a agenda da UE de forma mais determinada. Como o fazem outros Estados em posições de liderança, como a França e Alemanha. A noção de que existem riscos sérios de segurança à porta da Europa, que é necessário uma resposta muito unida e determinada relativamente a ameaças do exterior levam a UE a ter de pensar de forma inovadora. Temos sinais de que alguma coisa está a acontecer. Tais como? A acusação fundada de que os europeus não contribuíam o suficiente para a NATO e para a sua própria segurança, poderá estar a perder actualidade. Assiste-se também ao repensar de posição de Estados neutrais membros da União. A UE terá de pensar qual será a forma eficaz de responder aos desafios com que se confronta na área militar e de segurança, mas também na área diplomática e de acção humanitária. A relação com a NATO será uma questão central neste quadro, mas ela também se joga noutros campos da actualidade da UE. A questão do acordo-quadro entre a China e a UE em matéria de investimentos ficou pendente nos últimos meses. Que expectativas tem nesta matéria? O acordo parecia-me interessante e importante para aproximar a UE de um actor fundamental nas relações internacionais contemporâneas. Neste período de grande instabilidade nas relações internacionais, em que todas as certezas foram postas em causa, mais proximamente por força da pandemia e em que todos os processos da globalização que pareciam sólidos se revelaram afinal, algo frágeis, era importante evitar mais um vector de tensão. Mas esse vector existe. Um acordo como este correspondia a aspirações da UE e da China de revigorar as respectivas economias e sociedades e dar um passo em frente numa relação que vinha a esmorecer, apesar da proclamação de que a relação configuraria uma parceria estratégica. O acordo contemplava elementos muito inovadores no sentido de integrar a China numa visão de construção do mundo segundo regras que foram criadas na ordem mundial para o conjunto dos seus membros. Sabe-se, porém, que, por forças de práticas de direitos humanos que serão contraditórias com tais aspirações e as regras do próprio acordo, o Parlamento Europeu introduziu um elemento de perturbação neste processo de aproximação. Parece-me que, de momento, não há dados novos que permitam ultrapassar esta situação. A última cimeira UE-China teve, deste ponto de vista, poucos resultados palpáveis e as diferentes posições em relação ao conflito que marca a hora presente [Ucrânia] acabam por ter um impacto negativo. As possibilidades práticas de retomar este acordo, num quadro com discursos de tom diferente, não me parecem ser a perspectiva mais imediata. Isso não quer dizer que não fosse útil. Mas gostaria de frisar quão auspiciosos são, pelo contrário, os entendimentos entre a UE e a China no domínio da resposta internacional às alterações climáticas, bem como da relevância das instituições internacionais e do multilateralismo, numa senda de governação global em que importa que estes dois actores principais das relações internacionais contemporâneas estejam comprometidos. É no quadro desta perspectiva que via como particularmente relevante o acordo compreensivo sobre investimentos. Quais os grandes desafios da UE nos próximos tempos? É óbvio que estamos perante uma emergência. Este conflito injustificado tem reflexos imediatos na UE. Pede respostas imediatas no plano humanitário de acolhimento de refugiados, e a UE respondeu de forma condigna a essa crise. Exige também resposta diplomática de UE para surtir efeitos, nomeadamente de diálogo com a Rússia. Há também que permitir, por um lado, a legítima resistência da Ucrânia e sinalizar, ao mesmo tempo, à Rússia, que as suas acções são uma clara violação do Direito internacional e, por isso, têm de ser devidamente sancionadas. A UE tem sinalizado Estados que mais directamente se têm sentido agredidos, não lhes negando o horizonte europeu a que aspiram. Isso vale para a Ucrânia mas também para a Geórgia e Moldova que têm experiências similares, com ocupações parciais dos seus territórios. Mas a UE tem de lidar também com questões estruturais. Uma delas é a pandemia, que acentuou a necessidade de reconstruir o tecido sócio-económico tão afectado. A UE tem também que contribuir para uma globalização mais justa e sustentável, em que os diversos actores não tenham que viver angústias perante a paralisia dos processos globais. As crises e emergências que se esperam não devem também fazer perder de vista a relação com o ambiente e a preservação do planeta. Há que fazer a transição climática, não sendo permitidos adiamentos, tal como a transição digital que deve estar ao serviço da humanidade, da ecologia e do respeito pelos direitos dos indivíduos. Além disso, a guerra na Ucrânia coloca uma nova urgência na prossecução da transição energética, sem mais delongas, apesar de provavelmente ser um processo custoso.