Imprescindíveis e invisíveis

Às vezes é difícil distinguir uma conferência académica sobre turismo de um evento promocional e há várias boas razões para isso. Uma delas é a relativa juventude desta área de estudos, pelo menos de uma forma suficientemente generalizada e massificada para que se dediquem ao tema centros de investigação de todo o mundo, com a emergência dos decorrentes eventos internacionais de reflexão e partilha de conhecimento supostamente característicos das actividades científicas. Olhados ainda com recorrente desconfiança por parte da comunidade académica, os centros de investigação em turismo continuam a viver numa necessidade permanente de justificação da sua existência, da sua importância, da sua necessidade e, naturalmente, dos seus financiamentos.

Talvez por isso nos eventos académicos se faça tanta promoção do tema em si mesmo, da sua magnífica relevância societal, do seu esmagador impacto económico ou mesmo das inevitáveis consequências negativas que a falta de planeamento possa suscitar – na realidade, outra forma de se auto-justificar a importância do estudo e investigação no sector.

Há outras razões, certamente. É também comum que se investiguem casos territorial e emocionalmente próximos de quem investiga – e no caso do turismo o tema é até bastante propenso a que se revelem com intensidade estas afinidades.

Em cada apresentação há frequentemente um elogio sistemático de um lugar, de determinadas características que o tornam único, formidável e motivo de visita, ou até de um determinado tipo de viagem ou de segmente de mercado, mais vantajoso por uma ou outra razão, o que pode incluir impactos económicos, coesão social, protecção do ambiente, envolvimento das comunidades ou qualquer outra forma de supostamente se contribuir para o bem-estar da população envolvida – quer quem viaja, quer quem recebe.

Menos comum é olhar-se para quem trabalha enquanto a comunidade científica se enebria em auto-elogio e se dedica, também, aos justificados prazeres que estes encontros propiciam: cocktails, jantares, momentos de convívio social em ambientes mais ou menos estranhos, ou pelo menos afastados das rotinas quotidianas, que fazem parte da actividade profissional de quem se dedica à investigação em lugares onde os recursos disponíveis permitem alimentar esta agradável – e frequentemente produtiva – componente do trabalho científico.

E quem trabalha para que estes eventos aconteçam não é só o pessoal docente que vai reforçando o currículo com a participação em comissões científicas, ou os estudantes voluntários que oferecem trabalho gratuito para que os eventos possam decorrer: é também, por exemplo, quem trabalha nos hotéis ou nos restaurantes que acolhem quem participa nestes eventos – ou até os eventos propriamente ditos. Na realidade, são estas pessoas, mais ou menos invisíveis para quem está de passagem – incluindo quem se dedica á investigação – que garantem dia após dia a hospitalidade e o conforto de quem viaja, ou até as condições para que o conhecimento científico se vá difundindo, entre projectores ligados a computadores e cocktails de fim de tarde.

Enquanto investigador, também sou apreciador do género, naturalmente. Por uma qualquer coincidência, fiquei alojado em hotéis do mesmo grupo empresarial em duas das últimas viagens que fiz para participar em conferências antes de o covid-19 obrigar a que tudo se faça por via digital. Eram dois países bastante distantes, as reservas foram feitas em diferentes momentos, e o pormenor acabaria por me escapar, pelo menos até me ir apercebendo das condições de trabalho de quem lá passa a vida em permanência e não uns efémeros dias.

A primeira “experiência” foi no Vietname, país do sudoeste asiático com belas praias e fraco nível de desenvolvimento. Por coincidências várias, fui alimentando um contacto com pessoas que trabalhavam no restaurante. Esse contacto manteve-se após a conferência graças às maravilhas das redes sociais. Apercebi-me então que uma das pessoas estava a aprender a nadar porque queria trabalhar num barco de cruzeiros.

Surpreendeu-me desde logo que não soubesse nadar – ali mesmo ao pé da praia e a com parte do trabalho feito à beira de numa simpática piscina – mas também que quisesse mudar de trabalho, parecendo-me aquele um emprego bastante razoável no contexto da economia do país. Fiquei então a saber que quem ali trabalha não tem direito sequer a um dia de folga semanal – já para não falar nas longas jornadas de trabalho, que são mais fáceis de identificar, ainda que sistematicamente acompanhadas de uma genuína e acolhedora simpatia. Esta forma de exploração é possível porque a lei permite mas também porque a alternativa é o trabalho agrícola, a aceitação quotidiana dos ritmos e caprichos da terra e da natureza, com ainda menos descanso e certamente menos rendimento.

A segunda experiência foi em França, país onde a legislação laboral e as oportunidades ou alternativas de emprego são certamente mais diversas e mais ricas. Neste caso não havia certamente quem trabalhasse durante longas jornadas ou que não tivesse tempo de descanso adequado. Mas enquanto no Vietname havia sempre pessoas para os serviços necessários, em França faltava sempre pessoal: o bar até podia estar aberto mas não havia ninguém atrás do balcão e era preciso ir à recepção informar que gostávamos de tomar um café; os croissants podiam ter acabado no buffet do pequeno almoço, que tínhamos que esperar até que a pessoa de serviço voltasse à sala com ar demasiado atarefado para a tranquilidade do repasto – e certamente para oferecer o tal sorriso hospitaleiro do Vietname. A própria recepção ficava por vezes vazia e tínhamos que esperar pelo regresso da polivalente pessoa de serviço. Há mais direitos para quem trabalha mas certamente menos pessoas do que as fazem falta.

Estas pessoas trabalham num dos maiores grupos hoteleiros do mundo, cujo CEO aufere rendimentos anuais na ordem dos milhões de euros (na realidade, dizem as estatísticas da especialidade, é um dos gestores mais ricos do mundo na área do turismo). Hoje ouvi-o – numa conferência online – exprimir a sua preocupação profunda com a manutenção da actividade dos hotéis em zonas de guerra, como a Ucrânia, também em nome dos interesses e dos direitos dos trabalhadores. Da mesma forma, também na Rússia se mantém as operações, que uma coisa é o povo trabalhador e outra as lideranças políticas. Tudo em nome de quem trabalha, portanto.

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