Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasLa vache qui rit António Cabrita - 30 Mar 2022 28/03/22 Hoje percebemos como o século XX foi o rio das utopias sanguinárias (do fascismo e das revoluções comunistas às vanguardas artísticas) e da ignomínia programada – o resto é a lactescência das margens. Nessas margens leitosas rumorejavam as bolhas da paz, a fraternidade da música e a magna ilusão do cinema, assim como o sonho da educação para todos, prendadas remanescências do progresso, sob as saias da Ilustração. Bolhas que se revelariam frágeis, face a três investidas, que correspondem às três Virgens anunciadas certamente no Quarto Segredo de Fátima: a primeira, a Virgem do pós-colonialismo e do “politicamente correcto”, que fez cair as malhas na meia do universalismo; a Virgem do neo-liberalismo que abriu brechas no ideal democrático ao preterir aos valores a economia (daí ter-se abolido as minissaias da minha juventude); e a paradoxal investida das redes sociais que sob a face risonha (que também têm) mostrou ter duas faces e mostrou ao espelho o aspecto de uma Virgem Negra de uma comunicação sem ética (- a piada de Chris Rock e a estalada de Will Smith: duas faces da mesma moeda, no “vale tudo” sem comedimento). Se quisermos parafrasear o célebre mandamento de Lenine, segundo o qual «o socialismo é igual aos sovietes + a eletricidade», «esta invasão da Ucrânia é igual à violação das três virgens + a bondade com que o Putin nos quer livrar do fascismo». Tendo ido o ano passado à Beira dar uma formação para professores (da primária ao sétimo ano), saí de lá deveras apreensivo: a maior parte dos docentes não sabia, literalmente, o que era um “ponto de vista”. Portanto, os professores não logravam alcançar o reconhecimento de si que supõe a escolha de um “ponto de vista”, o que pouco campo lhes deixava para a generosidade da empatia; além disto simplesmente minar qualquer habilitação para o exercício democrático. A ignorância pode ser inocente? Lembremos, com Deleuze, que perverso é aquele que vive num mundo sem o outro. Alertado, fui detectando em graus diversos este mesmo estado ante-Gulliveriano por todo o lado e como alastrava pelas redes sociais e o Facebook: aí, a um estado de deficiência cognitiva generalizado junta-se a “tirania do indivíduo”. Um dos sinais de intolerância e de inadaptabilidade argumentativa é a efervescência com que se procura acima de tudo ter razão e a última palavra, numa postura heliocêntrica. A mim não me incomoda nada, rigorosamente nada, estar equivocado sobre algo, ou iludido, por me faltar qualquer informação que me fará contemplar outra perspectiva – é-me evidente, não vemos como as trilobites em 360%. Posso ser veemente na forma como armo a argumentação lógica, não confundo a (minha) opinião com o conhecimento. Procurando ser persuasivo, isso faz parte do jogo da comunicação, mantenho em aberto a possibilidade do erro e não invisto cegamente na validação narcísica. Tal como perder ao jogo não me muda a disposição. Fico inclusive contente se me apontam um ponto de vista de que não me apercebera. O que não me abstém de ficar abismado com algumas reacções, mais do que enérgicas, inflamadas, como se quem me interpela jogasse ali a vida. Já me aconteceu, se é amigo, recordar à criatura que o argumento que exponho é fruto dessa “terça-feira”, que na quinta-feira, fazendo jus à afirmação de Picabia de que temos a cabeça redonda para permitir às ideias mudar de direcção, poderei pensar diversamente. Sem que isso me roube um centímetro na defesa de algumas causas por que estas são o resultado de um pensamento sedimentado no imenso laboratório que a vida e a idade nos faculta; havendo, portanto, ideias que, como os rins e pâncreas, se tornam interiores: órgãos a que não podemos renunciar. Um exemplo: não me custa nada concordar com o sr. Biden quando ele diz que esta é uma guerra das democracias contra as autocracias, mas gostaria de o interpelar em relação ao cinismo com que ele, como arauto do Ocidente, agora deplora o “despertar dos carniceiros” que usam as armas que o Ocidente lhes foi vendendo, irresponsavelmente, em nome da economia. E gostaria de o inquirir sobre a sordidez de cada míssil Javelin custar 150 000 dólares, e um carro blindado ou um tanque 2 000 000 de dólares, tendo em conta a fome no mundo e a falta de escolas, de livros e vacinas no terceiro mundo; se esse é o seu conceito de avanço democrático. Coisas tão simples como manter-se higiénico o cu de um mandril. Em querendo acreditar que a democracia é, terá de ser, a garantia de um incremento da biodiversidade que de todo não se compatibiliza com a guerra e os seus negócios. Entretanto, estando o caldo entornado, leio: «Nas duas próximas semanas, Canadá, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Estados Unidos estarão juntos num exercício que simula a ameaça russa a território da Aliança. Os pilotos vão voar contra sistemas de defesa aérea de origem russa que alguns dos países da aliança operam. Quem participa quer que esta seja uma mensagem clara para o Kremlin.» E, do ponto de vista do meu sofá, que adora simulações, não sei se hei-de rir, se chorar! 29/03/22 QUEM FICA POR ÚLTIMO FAZ AS ACTAS DAS CIDADES DERRUÍDAS Ao fim de trinta anos de porfia/ nas fontes mais áridas e obscuras/ tendo inclusive decifrado os dísticos/ até aí secretos de Gilgamesh, na finisterra, // após trinta anos de genuflexões na água/ e de experimentar sucessivas, novas, tatuagens,/ alheio ao risco de não distinguir auto-profecia/ do que realmente cauteriza; em variações // da pedra que esposa a veia e da pedra/ sem trapaças e da pedra que escolta o silêncio/ e da pedra erudita que vai aos rins // galgar no azul e nas nuvens;/ montou finalmente a sua bicicleta/ de ouro – já não tinha era pulmão.