Nevermore

Falamos de um refrão, uma repetição para reforçar «Nunca mais» que o que passa não virá, anunciado pela asa negra do Corvo, que no fim de cada estrofe nos relembra que não se prolongue jamais a vã esperança. A vertigem sombria torna-se ainda aqui mais importante que uma narrativa moralista de intenção redentora na medida em que o puro objecto da linguagem não se encontra ao serviço de coisa nenhuma, escapando a todas as categorias, e apenas se centra na criação rítmica. Como conclusão, é tudo o que desejamos que a linguagem seja, um festim de boas ligações que concebam beleza e estranheza concertadas com um código de inspirador instante, que a temática sempre ensombra a qualidade dos textos podendo até suprimir a sua autonomia para se curvar a julgamentos redutores.

Um tal poema é tanto mais importante, agora, do que o foi sem dúvida no seu tempo, na medida em que desfizemos a linguagem num macerado volume de causas e efeitos que ditam a manifestação chamada realidade que não passa de exercício mórbido do nomear compondo as circunstâncias onde até a poesia, tomou para si, também tal suborno, retirando a capacidade do saber como marca da sua efabulação para ir sempre mais além. Sabemos, mesmo assim, onde andam as dores, e se amor existir, onde se encontra nos agrafos da melodia, que nestas coisas, amor ou desamor são apenas nomes que pouco nomeiam o fluxo da criatividade. – Podemos sim, criar realidade a partir do verbo, e quebrar realidades com o trabalho saído do seu génio, mas para isso, devemos estar livres para desempenhar funções que são invariavelmente difíceis.

Este belo Corvo não jaz nas calçadas flutuantes da cidade, não transportou nenhum mártir, nem viu martírio algum em que continuasse moura: «nunca mais» poderia ser cristã a tempo inteiro como desejaram as gentes, este outro Corvo fala-nos mais da desintegração final a que preside o nada. E no entanto, o sofrido Poe, range a sua dor por ter perdido a jovem amada, que sabe não poder ver mais, pois que para diante nada mais se vê. Ele ensina a esvaziar o cálice da ilusão com batidas nocturnas na janela, e espera que reponhamos a lucidez para encararmos que tudo é «apenas isso e nada mais» continuamos com ele até o sono chegar como um desejo antigo e confundimo-lo com o vento, a asa, o sopro, a substância.

S. Vicente vem numa nau qual Creonte para um mito daqui saído «Encoberto», mas o Corvo de Poe não carrega tais excessos, nem se balança em ondas acompanhando o corpo morto, ele deflagra toda a quimera numa componente calma e rasura a esperança florentina numa actividade onde tudo o mais nos parece rebuscado. É um talismã que nos vem alertar para o esquecimento. E nem nunca se conseguiu coisa igual! Não queremos, é certo, só que não podemos com estas leis tão fortes que presidem às nossas causas, que num ritmo belo na linguagem circunscrita, ele se despede das superfícies por onde a nossa loucura mergulhou como num lago de Narciso.

Até a saudade está ausente, e não será matéria de opróbrio que um poema tão raro se desfaça de todas as coisas conhecidas como sentimento, pois o que fica para além dos sentidos continua tão poeticamente puro como o grau de emoção que todos pensam que não lhe preside. Estar em nenhures falando com as trevas infindas corre o risco de ser ainda a grande paz, que sossego não há na busca de muitas coisas, que tudo vem de um simples efeito multiplicado.

«Deixe minha solidão intacta! – saia do busto acima da minha porta! Tire o bico do meu coração e tire a forma da minha porta!» Tantas coisas ainda para retirar! – “Lembra apenas corpo o quanto foste amado” e não esperes que a alma de traga recompensas. – Que nunca ninguém amou, é certo, e permanecemos sem ver o desastre imenso desta consciência que se desfaz, Nevermore. Nós brilhámos e ficámos saciados, já nada produz mais vida, na desesperança alongamos a espera como os monges se levantam para orar na madrugada. Depois, o negro Corvo, interpela-nos e ficamos bem, seguimos para o esquecimento.

Ditar aquilo que a nomenclatura linguística ilustra como materialismo e coroá-la de beleza, faz necessitar outras formas de dizer, que ditas pelo pragmatismo, elas se tornam rudes para fazer o trabalho imenso do descolar da condição: não devemos ser bruscos nem grosseiros face à evidência de uma realidade terrível, saibamos escutar o nome, Nevermore, como uma libertação, e toda a propaganda sobre a morte como um dolo a que nunca deveríamos estar sujeitos.

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