As Viagens de Gulliver – sexta parte

A despeito de haver momentos em que Swift parece afunilar a sua apresentação, isto é, parece reconduzir os habitantes de Laputa não à imagem de todos os humanos de um modo de ser de alguns humanos – como quando escreve «É verdade que muitas vezes notei esta característica nos matemáticos europeus» (154) ou «Ignoram completamente o que seja imaginação, fantasia e invenção, a ponto de não existirem no seu idioma que definam aquelas ideias.» (154) –, a verdade é que se trata de um mapeamento do humano nas suas diversas apresentações, não apenas no sentido ontológico, como na denúncia da curiosidade, da ambiguidade, do falatório, do esquecermo-nos de nós mesmos, mas também na fragmentação comportamental do humano, isto é, os humanos nos seus diversos afazeres e grupos. Nesta terceira parte, além de encetar esta apresentação do humano por dentro, isto é, do humano enquanto ser humano, quer em sentido ontológico quer em sentido comportamental, Swift prepara-nos também para a desmontagem da maior das nossas ilusões: a de que somos animais racionais. E ser esta a definição que nos distingue de todos os demais seres vivos. Para além de não ser verdade, Swift ironicamente ainda nos apresenta isto através de uma inversão completa do nosso ponto de vista, a saber, mostra que existem seres que são realmente racionais, contrariamente a nós, e que têm a forma de cavalo. Swift traça uma completa inversão no ponto de vista. Leia-se como termina o capítulo III desta quarta parte: «Disse-lhe [ao príncipe] ainda que, se a sorte me levasse de volta ao meu país, a fim de relatar as minhas viagens – como era minha intenção –, todos pensariam que eu dissera uma coisa que não existia; que eu inventara toda a história; e que, com todo o respeito que lhe devia, assim como à sua família e amigos, e sob a sua promessa de que não se ofenderia, os meus compatriotas dificilmente acreditariam na existência de um país em que um houyhnhnm fosse um ser superior e um yahoo uma besta.» (224-5)

Ao conduzir-nos por esta inversão, aquilo que Swift nos diz e mostra com muito rigor é uma diferença absoluta entre ser racional e ter razão. Nós temos razão como alguém tem um carro. Mas ter um carro, por um lado não faz dele um ser automóvel e, por outro, também não faz com que ele use sempre o carro. É assim com a razão. Se fôssemos realmente seres racionais nunca faríamos ou diríamos algo que contrariasse esse modo de ser, isto é, nunca sairíamos da razão. Mas não é isso que acontece com o humano. Nós somos muito mais parecidos com os yahoos, da quarta parte do livro, e com os habitantes de Laputa, da terceira parte, do que com aqueles cavalos racionais.

Comecemos por ver duas passagens. A primeira é quando Gulliver fala ao príncipe acerca da natureza das guerras, tão comuns no mundo de onde vem, e das suas atrocidades, lemos: «Mas quando uma criatura com pretensões a racional era capaz de tantas enormidades, assaltava-o o terror de que a corrupção desta faculdade [razão] fosse pior do que a própria brutalidade. Por conseguinte, deu-me a impressão de estar convencido de que, em vez de raciocínio, nós tínhamos somente qualquer qualidade apropriada para aumentar os nossos vícios naturais, assim como o reflexo dado por um rio de corrente agitada nos dá a imagem de um corpo disforme, não só de maiores dimensões como também profundamente alterado.» (234) A segunda passagem tem a ver com a incapacidade do príncipe em compreender as inúmeras doenças que causamos a nós mesmos. Leia-se: «Disse-lhe que nos alimentávamos de mil coisas que operavam de maneira contraditória, que comíamos quando não estávamos com fome, e bebíamos sem a menor provocação da sede, que nos sentávamos noites inteiras ingerindo licores fortes, tendo o estômago vazio, o que nos predispunha para a indolência, inflamava os nossos corpos e precipitava ou impedia a digestão.» (239)

O que está aqui em causa é a incapacidade de o humano ser coerente com a razão, isto é, de ser racional. A despeito de alguma coisa nos fazer mal, e nós sabermos disso, ou que nos possa vir a fazer mal, nós não a deixamos de fazer ou de ingerir. Ora, segundo o ponto de vista da razão isso é absurdo, uma contradição inaceitável. No fundo, estamos perante aquilo que era o projecto dos estóicos, em que o humano se propunha a agir em concordância com o que pensava. O estóico é aquilo que pensa. Ou seja, contrariamente à maioria das pessoas, o estóico sabe que o tabaco faz mal e não fuma, sabe que não se deve enganar os outros e não engana, sabe que não deve entregar-se às paixões e não se entrega. Para o estóico o conhecimento faz sentido, isto é, o conhecimento que tem do mundo e da mecânica do humano fá-lo agir em concordância com esse conhecimento. Ou seja, o estóico diz «assim devo agir e assim vou agir». Pensamento e vontade unem-se. É o que mais se aproxima de uma filosofia ética racional.

Evidentemente, também poderíamos falar dos epicuristas. Tanto epicurismo quanto estoicismo são filosofias de ascese. Mas estas filosofias ascéticas e racionais advinham, contudo, do conhecimento da mecânica da alma humana. Mais os epicuristas, evidentemente. Será com Kant, na sua Crítica da Razão Prática que a razão se torna um mandamento, isto é, um a priori transcendental, a priori do humano, e não uma consequência do conhecimento da mecânica da alma humana. Ou seja, do mesmo modo que para houyhnhnms ir contra a razão é uma auto-contradição, assim aparece em Kant. O filósofo que mais nos mostra o ponto de vista deste povo de cavalos é precisamente o filósofo alemão de Könisgberg. Aquilo que faz com que não sejamos auto-contraditórios é o que Kant chama imperativo categórico. O imperativo categórico exige que cada um de nós aja apenas segundo uma máxima que possa ser uma lei universal. Exercer uma acção contrária a uma máxima universal, isto é, a uma máxima que seja boa para todos, que não prejudique ninguém, conduz ao absurdo. O exemplo mais conhecido de Kant é também aquele que podemos encontrar ao longo de toda a quarta parte do livro de Swift. Pergunta Kant: «Poderia alguém mentir em seu benefício ou de um ente querido ou em favor de toda a humanidade sem cair em contradição?» A resposta é: «Não, pois a mentira não pode ser uma máxima universal.» O imperativo categórico em Kant é uma forma a priori, pura, independente do útil ou do prejudicial. É uma escolha voluntária racional, por finalidade e não por causalidade. A razão é a condição a priori da vontade. O humano enquanto ser racional que é não pode ir contra o imperativo categórico sem que deixe de ser racional. No fundo, Kant descreve o mundo dos houyhnhnms e não o nosso mundo, que é muito mais próximo dos laputaneanos e dos yahoos.

Veja-se esta célebre passagem de Swift: «Como estes nobres houyhnhnms são dotados pela Natureza de uma tendência geral para as virtudes, e não fazem a menor ideia do que seja o mal numa criatura racional, a sua máxima principal é o cultivo da razão, que deve governá-los inteiramente. Não obstante, a razão não constitui, entre eles, uma questão problemática, como entre nós, onde os homens podem arguir com plausibilidade ambos os lados de uma questão; entre eles a razão é uma convicção imediata, como deveria sempre ser quando não é deturpada, obscurecida ou descolorida pela paixão e pelo interesse. Lembro-me que tive a maior dificuldade de explicar ao meu amo o significado da palavra “opinião”, ou como é que um determinado ponto pode ser discutido, uma vez que a razão nos ensina a afirmar ou negar somente as coisas de que estamos absolutamente certos, e não nos é possível tomar quaisquer atitudes nas questões que ficam além dos nossos conhecimentos.» (252) Esta passagem mostra claramente esta distinção entre os seres racionais que são os houyhnhnms, tal como na filosofia prática de Kant, e nós. Por incrível que pareça, há uma passagem ainda mais pertinente e mais próxima da filosofia de Kant. Leia-se já no capítulo X: «[…] eles não concebem que uma criatura racional possa ser obrigada, mas sim aconselhada ou exortada, porque ninguém pode desobedecer à razão sem renunciar ao direito de ser considerado uma criatura racional.» (265) Ser racional e ter razão não só não são uma e a mesma coisa como estão a anos-luz de distância.

Ainda nesta senda, leia-se no início do capítulo VII: «Talvez o leitor se admire do retrato livre que me decidi a fazer da minha própria espécie junto de uma raça de mortais já predisposta a conceber a mais baixa opinião do género humano, dada a total identidade entre mim e os seus yahoos. Mas devo francamente confessar que as inúmeras virtudes daqueles excelentes quadrúpedes – colocados em posição oposta à das corrupções humanas – me tinham aberto de tal maneira os olhos e esclarecido o meu entendimento que principiei a analisar, sob uma luz muito diferente, as ações e paixões do homem, e a pensar que a honra daqueles que pertenciam à minha própria espécie não merecia muita defesa.» (243)

Quando parece que Swift não pode aumentar mais a parada, que por um lado não consegue arrasar mais o nosso ponto ilusório e, por outro, abrir-nos mais os olhos, de modo a vermos as coisas com uma luz muito diferente, como Gulliver escreve, eis que se dá uma aproximação gritante à Alegoria da Caverna de Platão. Que já vinha sendo anunciada, aqui e ali. Principalmente quando na quarta parte fica clara a oposição entre opinião e razão. Mas isto ficará para a próxima e última semana.

(Continua na próxima semana)

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