Diários de Próspero hPosturas António Cabrita - 5 Ago 2021 Quando tive de ir para o hospital consegui levar alguns livros (bom, escolhas que tinha de fazer de modo sonâmbulo, febril, e em cinco minutos). Peguei ainda no tomo completo do Herberto Helder mas folheei cinco páginas e esbarrei em palavras abstractamente líricas, vazias, uma luxúria que vem do raciocínio, como uma máquina, que produz ideias ou metáforas segregadas por outras ideias e que, por terem abandonado o contacto com a vida nua, resistiam agora menos à violência, à prova do cateter. A poesia tem de voltar a uma dimensão humana, de superar a prova do cateter (esse embate com a dor e a violenta drenagem de fluidos num vaso sanguíneo), ter o seu quê de mancha humana e de grito. Quantos poetas chegarão lá acima para a pergunta fatal do S. Pedro: eh tu onde meteste as tuas tripas? Estou a ser injusto com o velho vate e aliás ao contrário de muitos adorei os seus últimos livros porque precisamente havia aí uma nova porosidade com a vida que prescindia de volutas e da gratituidade do engenho para ir direito ao osso, à humílima presença do ar que se partilha. Mas, pelo meio, a provação da doença destapara os brilhos de alguma talha dourada naquele húmus, algum apego ao adorno. Embora não esqueça que quanto mais uma coisa tem profundidade mais deva ser refinado o espírito que a pode entender. E havia o problema do peso. Com quantos tomos completos me deixariam entrar no isolamento? Mais tarde, já no hospital, optei por baixar na net uma antologia de Gullar. E logo ao quarto poema apanhei, AS PERAS: «As peras, no prato,/ apodrecem./ O relógio, sobre elas,/ mede/ a sua morte?/ Paremos a pêndula. Deteríamos,/ assim, a/ morte das frutas?/ Oh as peras cansaram-se/ de suas formas e de/ sua doçura! As peras,/ concluídas, gastam-se no/ fulgor de estarem prontas/ para nada./ O relógio/ não mede. Trabalha/ no vazio: sua voz desliza/ fora dos corpos./ Tudo é o cansaço/ de si. As peras se consomem/ no seu doirado/ sossego./ As flores, no canteiro/ diário, ardem,/ ardem, em vermelhos e azuis. Tudo/ desliza e está só.(…)», um poema magnífico, que naquela cama abismada pela espectralidade dos sudários, me levava a identificar-me com as peras, com a fugacidade que lhes dá e rouba a doçura e com essa voz que desliza para fora dos eixos do tempo. Li entretanto, outras coisas com alguma densidade paliativa, que me desviaram de pensamentos tétricos, “A Tempestade”, de Vladimir Sorokin, que à partida me parecia e se confirmou como um pastiche do romance russo do século XIX mas que vai enlouquecendo à medida que progride e o absurdo se torna toda a medida, e o esplêndido segundo tomo da biografia de Doris Lessing, “Andando na Sombra”, que não deixa nada em pé dos mitos do século xx (da derrocada dos mitos políticos da esquerda, à figura do escritor como pêndulo de certos valores, em retratos onde esta pose é esgarçada pelas garras da autocondescendência, do paradoxo quanto à frequência com que se encontram em desacordo com a sua consciência, ou a da inveja) mas é de uma coragem na exposição da intimidade e duma honestidade que retempera e recupera, ainda que sob a sombra perpéta da possibilidade do erro, uma certa força moral. E reli sobretudo um ensaio com um prazer redobrado: “Experience Esthetique et Spirituelle chez Henri Michaux /la quete d’un savoir et d’une posture”, de Claude Fintz. É um livro que me é vital pois separa o trigo do joio e aqui é menos a estética do que o espiritualidade que me interessa, nessa vertente heterodoxa mas tão sériamente vivida por Michaux e onde também sinto ser o meu sulco – não falo dos conseguimentos mas do lugar onde me posiciono -, tal como na Catalunha o sinto na obra de Chantal Maillard, que já traduzi e espero vir a apresentar com outro fôlego. Transcrevo dois excertos do Fintz, onde me sinto totalmente identificado: «Escrever permite, a um tempo, mudar-se a si mesmo, apaziguar as desordens individuais, mas também mudar o mundo e regular-lhe o mal. Michaux sonha com uma escritura sem traço, transfigurada em força radiosa. Ele crê na eficácia mágica duma escrita que desembocará no bem e cuja “crueldade” se metamorfosearia em poder de cura». A segunda: «A escritura em Michaux é explicitamente pensada como empreitada de conhecimento de si (…) a escritura é certamente espelho das inquietações, esperanças, hesitações, impasses da via experimental, mas ela é em si mesmo o caminho perdido e reencontrado de si; ela permite “percorrer-se” sobre diferentes modos – compreendendo-se aí o ficcional e o imaginário – mas ela é em última instância una ascese que leva à maturação, quase à mutação interior». Portanto, naquele umbral em que me encontrava confirmei as minhas convicções: merda para o cinismo, para o realismo, para o niilismo. Nós somos melhores do que isso – é o que vos digo. E para alguém como eu, a quem interessa mais a espiritualidade do que a infusão num Deus nomeável, não deixo de encontrar sentido na questão levantada por Karlfried Durckheim: «Vocês serão melhores pintores, sapateiros ou carpinteiros, se sentirem que a vossa responsabilidade é para com Deus e não somente para com o vosso cliente.» Sim, é preciso que a sensibilidade da poesia testemunhe o seu tempo (é o fragor existencial de que não devemos abdicar) e ao mesmo tempo, numa dobra, como algo que difere ou se bifurca, desperte uma instância “anónima” e mais profunda, enraizada num outro plano onde o pequeno ego se reconcilia e dissolve – é isso que nos mede e reconstitui. É também o que nos dá uma dimensão crítica, um sentido da proporcionalidade dos valores que emudece o encantamento das sereias.