VozesNovas rotas dos Impérios João Romão - 18 Jun 2021 Está a fazer dois anos: foi a 28 de Junho de 2019 que aqui publiquei “Muros e estradas”, uma crónica em que comparava o abnegado esforço do então presidente dos Estados Unidos da América para a construção de muros que protegessem o seu país de potenciais invasões de imigrantes, com a iniciativa que a China designou como a “nova rota da seda”, a reactivação dos caminhos que ligam o extremo oriente asiático à Europa, desta vez através de um programa de investimentos promovidos pelo estado chinês e destinados a reforçar as infraestruturas e capacidade produtiva de países com recursos mais escassos, não só na Ásia mas também em África, que as rotas de hoje têm maior amplitude e flexibilidade geográfica – também à medida das ambições de quem pode adaptar-se às circunstâncias ou disputar em várias frentes territoriais as competições desenfreadas que a globalização capitalista vai promovendo. Na altura olhava-se desde os Estados Unidos e da Europa com manifesta desconfiança e animosidade para esta iniciativa chinesa, percebida como uma tentativa de aumentar a influência económica, cultural e política do país com o pretexto do apoio ao desenvolvimento – enfim, o discurso habitual sobre os perigos e consequências do imperialismo, das pouco democráticas implicações da expansão da hegemonia política por via da dominação económica. A curiosidade, desta vez, é que o discurso sobre estes perigos vinha precisamente do governo de um dos países mais desenvolvidos do mundo – os Estados Unidos, com toda a sua longa tradição e pergaminhos no assunto em questão – com o diligente e dedicado apoio de governos e instituições europeias. Na minha crónica de há anos comparava então a nova “Rota da Seda” promovida pelo governo chinês com o que ficou conhecido como o “Plano Marshall”, financiado sobretudo pelos Estados Unidos, que apoiou programas de larguíssima escala para a reconstrução de infra-estruturas e capacidade produtiva após a II Guerra Mundial. Foi um plano altamente apreciado, não só por quem o promoveu, mas também pelos países que receberam os investimentos – e até pela generalidade dos analistas e estudiosos de políticas económica nas décadas que se seguiram, à esquerda e à direita do espectro ideológico. Foi um plano que claramente beneficiou os países que receberam os investimentos e que tiveram oportunidade de promover um ciclo longo de acelerada e intensa recuperação económica, que levaria até a que se viessem a questionar os limites destes acelerados processos de desenvolvimento, com a inerente delapidação de recursos e degradação ambiental, já no final dos anos 1960. Na altura, evidentemente, o plano também contribuiu – e muito largamente – para se afirmar no planeta uma hegemonia económica, cultural e política dos Estados Unidos que até então se desconhecia. Havia Hollywood, o jazz e viria o rock’n’roll, que dificilmente teriam a expansão global que tiveram se não fosse o ambiente de generalizada expansão económica, aumento do consumo, florescimento de novas actividades e interesses culturais, abertura de horizontes e perspectivas mais cosmopolitas, pelo menos para quem não vivesse sob a tenebrosa sombra de regimes ditatoriais, pobres e broncos, como o que assombrou o povo português por quase meio século. A consolidação dos EUA na hegemonia política do planeta é largamente tributária da sua liderança económica no período do pós-II Guerra e isso muito se deve a este portentoso programa internacional de investimentos. Dois anos volvidos sobre a tal crónica que aqui publiquei, muda então o cenário: há um novo governo nos Estados Unidos e uma outra percepção sobre as novas rotas da seda – que são, na realidade, novas rotas da finança: não basta olhar com desconfiança e discurso crítico para o papel que a China está a assumir ou a reforçar no apoio ao desenvolvimento económico da regiões mais desfavorecidas do planeta: se se quer disputar o inerente reforço da influência económica, cultural e política, não há outra alternativa senão fazer o mesmo. Nasce agora então novo plano, apresentado esta semana pelo presidente dos Estados Unidos aos seus parceiros líderes das potências económicas planetárias, o chamado G7, um dos símbolos máximos do imperialismo económico do planeta, disposto agora a mobilizar 40 mil milhões de dólares para apoiar investimentos na América Latina, Caraíbas, África e Indo-Pacífico. Posicionam-se então os impérios para nova disputa sobre a economia do planeta e a inerente hegemonia política. A China retomou a velha Rota da Seda para propor uma modernização acelerada de países menos desenvolvidos. Os Estados Unidos aproveitam a crise provocada pela pandemia de covid-19 para oferecer apoios à recuperação económica. Em ambos os casos, mobilizam-se os recursos da sobre-acumulação de capital que vai engordando bilionários avarentos, alimentando processos globais de especulação imobiliária ou financeira e criando sucessivas novas oportunidades para branqueamento de capitais variados. Pelo menos parte do que estes respeitáveis larápios vai acumulando retornará à esfera da produção. Já não é mau de todo.