Crónica hospitalar

O olhar em contra-picado, um travelling veloz sobre tectos abobadados, o frio que me envolve, um misto de insegurança e alívio. Plano lateral, os azulejos, que extraordinários azulejos, serão século XVII ou XVIII, uma voz que me interrompe

– Está tudo bem, Nuno? Estamos quase a chegar, diz-me um simpático rapaz de bata verde, o responsável por empurrar o charriot que permite este travelling e sobre o qual estou deitado e o mistério permanece enquanto os corredores se vão desfazendo, os azulejos, aqueles azulejos de que século são, isso é que importa saber, ninguém me responde.

Depositam-me num sarcófago electrónico, mais sorrisos e gentileza cuidadosa, “feche os olhos”, com certeza que fecho os olhos mas acordem-me, foi por ter fechado os olhos de repente que vim aqui parar, não me levem a mal.

Não chego a ver os misteriosos raios que invadem o meu cérebro, só espero que não estejam programados para desvendar algumas coisas que lá tenho alojadas, não seria bom para ninguém e lá se ia a minha parca credibilidade.

Pouco tempo depois o travelling em sentido inverso e para sempre o mistério dos azulejos ficará por desvendar. Estacionam-me enfim numa sala ao lado de outros como eu, camas perfiladas numa simetria que me pareceu inusitada, azáfama silenciosa e diligente de mais batas verdes. Mesmo ao meu lado está um idoso africano, talvez angolano pelo sotaque. Fala muito com as enfermeiras e médicas, sempre rematando da mesma forma

– Vamos todos morrer!, “Vamos sim, senhor Pedro”, diz uma das enfermeiras com o sorriso cansado mas gentil de quem reconhece um freguês habitual. O senhor Pedro continua a insistir no seu discurso apocalíptico e eu penso que me puseram ao lado de uma espécie de alma gémea, talvez tenha a ver com o que o sarcófago electrónico descobriu nas circunvalações do meu cérebro. Vamos todos morrer mas agora não, tenho coisas combinadas. E mesmo sabendo que dificilmente o meu fim está próximo olho para o lado e vejo os meus companheiros de enfermaria num sofrimento manso, expectante e não consigo pensar que ali cada drama é único, ali é o meu drama, um egoísmo inesperado mas real, reduzido que estou a um monte de carne e ossos, despido de todas as minhas afectações, qualidades e defeitos que nada me servem. E talvez por ter sido apanhado em flagrante com estes pensamentos uma enfermeira pede-me que me dispa para vestir o pijama do hospital. A minha resposta veio num tom de indignação circense “senhora enfermeira, um casaco às bolinhas e calças aos quadrados? Recuso, tenha paciência, apesar de tudo tenho uma reputação a manter” e recebo um piropo amável para me acalmar “sim, percebi que o senhor Nuno gosta de estar elegante”, o que sendo simpático é difícil de acreditar para quem naquele momento está com a cabeça ligada. Nessa altura o magnífico senhor Pedro diz a frase do dia

– Vocês aqui só falam de doenças! e eu não contenho a gargalhada, gosto deste humor do náufrago do Titanic que agarrado à bóia tem tempo para indagar o que teria acontecido ao icebergue. O meu companheiro repara enfim em mim, sorri comigo e reconhece um cúmplice para depois voltar ao seu mantra preferido, “Vamos todos morrer”.

Mas desta vez, desta vez olha para mim e mais baixo diz-me “Vamos todos morrer mas eu estou feliz”.
E pela primeira vez a minha exagerada consciência da mortalidade levou-me a desejar a vida, a infelicidade que seja, a dizer obrigado e a já ter saudades e inveja do senhor Pedro.

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