A Máquina do Romance

Para o Sérgio Gonçalves

 

Helder Macedo, nascido na África do Sul em 1935, figura incontornável das letras e da cultura portuguesa – responsável pela negociação e aquisição da Cinemateca Portuguesa, quando era Secretário da Cultura do governo de Maria de Lurdes Pintassilgo –, tornou-se romancista relativamente tarde. A publicação do seu primeiro romance, «Partes de África», aconteceu em 1991, tinha o escritor 55 anos. Além do primeiro romance, profundamente estudado no Brasil – multiplicam-se as teses universitárias acerca do livro – há outros dois romances muito importantes na vida literária do escritor: Pedro e Paula, por ter sido o seu maior sucesso comercial, e Tão Longo Amor Tão Curta A Vida, que é provavelmente o romance contemporâneo mais extraordinário escrito na nossa língua. Para além de romancista, Helder é também poeta e ensaísta. Como poeta, o seu primeiro livro, «Vesperal», 1957 – com ainda 21 anos – foi euforicamente elogiado por Jorge de Sena, que nunca foi levado a encómios exagerados. A partir daí, Jorge de Sena e Helder Macedo tornaram-se amigos para sempre. Ambos expatriados. Foi durante anos responsável pela Cátedra de Camões no King’s College, em Londres, onde ainda vive, desde os anos 60.

A sua obra ensaística vai desde a sua famosa tese de doutoramento sobre Cesário Verde – «Nós – Uma Leitura de Cesário Verde» – até Camões e Bernardim Ribeiro, passando por Machado de Assis e Teixeira Gomes. Os prémios e as condecorações preenchem páginas.

Tudo isto é conhecido e reconhecido. Mas aquilo que me traz aqui hoje é um livro pouco conhecido de Helder – um dos seus ensaios –, intitulado «A Máquina do Romance», de 1989. Era como se esse livro anunciasse tudo aquilo que o autor iria fazer depois na prática, isto é, nos seus romances. Na realidade, «A Máquina do Romance» é o livro mais helderiano de todos os livros de Helder Macedo, apesar de, à distância, nem parecer ter sido escrito por ele. Mas este pensamento assalta-nos apenas superficialmente. É sabido que os romances de Helder mais do que construir uma imagem, tornam todas as imagens em palavras. Talvez não seja certo dizermos que nos romances de Helder uma palavra vale mil imagens, mas é seguro dizermos que uma frase vale mil palavras. Um acontecimento vira uma frase, uma história vira um parágrafo, uma vida vira um capítulo, o universo um romance. Em «A Máquina do Romance», Helder escreve, à página 34: «O romance torna tudo o que toca em romance. Quer sejam pessoas, edifícios, países, obras de arte, óperas, filmes, tudo o que o romance evoca passa a ficar parte dele. O universo não tem parte de fora.

No universo não há lado de fora e lado de dentro, tudo é lado de dentro. E assim acontece com o romance. O romance não tem lado de fora. Aquilo a que chamamos intertextualidades não passa do modo de ser natural do romance. Tal como no universo, no romance tudo é intertextualidade.»

É evidente que Helder referia-se ao seu modo de escrever romances, ou melhor, ao modo como iria escrevê-los, deixando isso logo anunciado em 1989, neste ensaio. «A Máquina do Romance» é hoje uma espécie de visita, não à oficina do romancista Helder Macedo, mas àquilo que é a essência do romance helderiano.

Numa entrevista, nesse mesmo ano, e acerca deste ensaio, Helder diz: «Depois de Pessoa, não me parece interessante escrever romances sem a dimensão de alteridade do humano exposta. Contar uma história como se imitássemos a vida de alguém também não me interessa. A narrativa em si mesma tem de ser a personagem principal do romance. No fundo, aquilo que pretendi que ficasse claro é que a máquina do romance é a própria narrativa a desenvolver-se ao longo do livro, a apropriar-se dele, arrastando tudo para dentro de si: autor, leitor, personagens, mundo. A narrativa tem vida própria, pensa e pensa-se a si mesma.»

Todos os livros de Helder Macedo acabam por se desenvolver a partir da ideia de narrativa como problema. Não são as personagens que importam, nem sequer o autor, mas a narrativa no sentido de problema. Como se pode narrar, o que é narrar hoje em dia? Escreve no ensaio: «Narrar não é contar uma história, nem tão pouco expor problemas da existência ou da sua percepção. Narrar é transformar tudo em palavras. Lê-se no início do Evangelho Segundo São João: “1. No princípio era a Palavra […] 14. E a Palavra tornou-se carne e habitou entre nós […]”. Todo o romance é a tentativa de inverter esse Evangelho: No Princípio era a carne; e a carne tornou-se em palavra. Se no Evangelho há um incarnar da palavra, no romance há um inparabole da carne. Ou seja, no romance a carne torna-se em palavra. O mundo torna-se palavra.» Infelizmente, «A Máquina do Romance» está esgotadíssimo. Esperemos que em breve seja reeditado.

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