A miúda mais bonita da turma

Já não me lembro se foi no sexto ou no sétimo ano que dei conta de que existiam mulheres e que isso não me era indiferente. Com doze ou treze anos, o sexo era a penúltima das minhas preocupações. O sexo era, aliás, um abstracto mais ou menos curioso que correspondia a conversas que os mais velhos – ou os mais afoitos – tinham. O meu interesse pelas raparigas adveio antes do meu interesse por sexo. Ou, como dizia o Santo Agostinho das Confissões a respeito de assuntos mais nobres, «eu já amava antes de saber amar».

Baixinho, tímido e basicamente amaldiçoado pelo facto de a minha mãe insistir em ser ela a escolher-me a roupa, poucos argumentos tinha para que uma rapariga tivesse qualquer interesse extracurricular em falar comigo. As pessoas com quem me dava, aliás, eram os proscritos do continente inacessível da popularidade, aqueles que faziam um grupo de não serem aceites em grupo nenhum. E, tirando a questão feminina, era um grupo bem mais interessante do que o dos aspirantes a motários ou a delinquentes (mas muito menos sexy, obviamente).

Quando a Luísa, provavelmente a miúda mais bonita da turma, meteu conversa comigo acerca do quão violentos os rapazes podiam ser nas suas brincadeiras, senti-me, pela primeira vez na vida, especial. Outra humanidade, à margem dos penteados decalcados da Bravo e das calças da Chevignon, era possível. Eu sempre achara que a Luísa, a interessar-se por alguém, iria naturalmente sucumbir ao charme do Ivan, um latagão magríssimo de metro e setenta (eu olhava para ele de baixo para cima sem nunca ousar dirigir-lhe uma palavra) com um mullet cujos caracóis loiros faziam inveja a qualquer querubim do renascimento. Eles eram o par perfeito. Com o seu aspecto irrepreensivelmente nórdico, contrastavam de tal modo com o nosso ar marroquino de algarvios queimados do sol que não acabarem juntos era uma ideia que roçava o pecado.

Quando a Luísa me convidou para ir ao cinema com ela, ver o Robocop, devo ter demorado uns bons dois minutos até lhe dizer, muito baixinho, que sim. Já era difícil acreditar que a Luísa pudesse achar em mim qualquer interesse que justificasse uma troca breve de palavras, mas convidar-me para o cinema tinha laivos de história para um daqueles defuntos jornais de notícias do bizarro e do além. Pedi emprestado umas calças de fato de treino a um amigo mais atreito à questão da moda e aperaltei-me com pude. Duas gotas do Old Spice do meu pai atrás das orelhas completaram a minha transformação. Às 19:15 estava à porta do café na baixa onde tínhamos combinado encontrar-nos. Era verão e a íamos à sessão das 20:30, pelo que pelas minhas contas, a nervoseira resultante de uma hora a tentar não fazer figuras de urso diante da Luísa dava para ensopar duas vezes a roupa impecavelmente passada a ferro que vestia naquele dia.

Passou-se o tempo, muito devagar, e a Luísa não apareceu. Tão desanimado quanto estranhamente aliviado, dirigi-me para o cinema. Era o universo a retomar o seu curso natural, pensei. Na bilheteira, vejo a Luísa e ainda pensei em gritar-lhe do outro lado da rua. Ainda bem que não o fiz. Ela estava com o Ivan. Ele, naturalmente imune ao embaraço, não parava de lhe contar o que eu imaginava serem, pelo riso dela, as melhores piadas do mundo. Eu, por dentro, desmoronei de amores pela primeira vez.

Fiquei sentado duas filas por detrás deles. O Ivan, alto, fez-me pelo menos metade do filme com aqueles caracóis que me pareciam cada vez mais ridículos a cada minuto que passava. Do nada, saquei da pastilha corpulenta que mastigava há horas (preceitos para o hálito, conselho do amigo das calças) e atirei-a de modo a que fizesse ninho no cabelo do Ivan.

Se estiveres aí desse lado, meu querido, aceita as minhas tardias desculpas. Sim, fui eu. Sim, tu não tinhas culpa nenhuma de seres insuportavelmente bonito. Espero-te bem. Lamento teres tido que rapar esses gloriosos caracóis. Ah, e lamento pela Luísa. Afinal preferia morenos. Tans pis.

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