Sobre a canção popular moderna – Jean-François Revel

Tradução de Emanuel Cameira

Na italomania, a noção de «canção popular italiana» é um dogma constitucional. Toda a imaginação nórdica associa teimosamente «meridional» e «popular». Pela sua essência, pela sua natureza, o sotaque marselhês passa por «popular» – como se não fosse também o dos burgueses de Marselha desta ou daquela velha aristocracia ou plutocracia.

Se entendemos por «canção popular» as canções inventadas e cantadas pelo «povo», aquelas de que os folcloristas acompanham as migrações, as evoluções ao longo dos séculos, das quais procuram determinar a origem e as diversas versões com vista a coleccioná-las nos tesouros que as salvarão do esquecimento, direi que, nesse sentido, a canção popular italiana tem o destino de todas as dos outros países: é cada vez mais empurrada pela torrente sonora que a rádio e o disco propagam desde há trinta anos, e os etnomusicólogos trabalham em Itália como em todos os lugares: apressam-se a registar os vestígios que ainda encontram a fim de definir o corpus.

E se por «canção popular» queremos dizer as canções escritas por autores e compositores profissionais para se tornarem sucessos populares, responderei que este género não existe em Itália, artisticamente falando. Com excepção da canção napolitana, infelizmente pouco renovada, a música destinada às massas limita-se à mais indecisa imitação da «música ligeira» americana, mistura branda de falso jazz e de gastos e frouxos ritmos sul-americanos.

Nesta área, os Italianos têm pouco gosto pela autenticidade: o gosto pelo verdadeiro jazz, por exemplo, ou pelo verdadeiro flamenco.

Essas maravilhas que são as grandes óperas italianas do século XIX mantêm-se, em última instância, como a única música popular autêntica e bela, quero dizer, consumida pelo grande público.

Mas não encontramos canções equivalentes a esses produtos, ora populares ora refinados, que inspiraram e foram recuperados ou interpretados por personalidades tão originais como Bruant, Chevalier, Mistinguett, Trénet, Piaf, Léo Ferré ou Brassens. Esta canção popular, de facto, contém toda a poesia moderna: Verlaine, Laforgue, Corbière, Prévert, etc., essa ponte lançada entre a literatura e a fala do povo. A canção popular moderna é a fala popular vista através da poesia, mas essa poesia foi primeiro necessária para que Bruant tivesse a ideia de registar, tal e qual, as confissões de prostitutas e delinquentes e de as cantar com total despojamento, ao som de um simples realejo. Na origem deste cruzamento, encontramos o princípio: «A Arte é o contrário da Arte», princípio, como vimos, alheio ao espírito criador italiano (excepto na arte do cinema, onde ele o entendeu e aplicou com os resultados admiráveis que conhecemos). Por sua vez, a poesia moderna passou à canção, graças à qual o surrealismo, por exemplo, foi impresso em milhões de cópias.

Ademais, a canção popular moderna pressupõe o calão. Contudo, o calão, ele mesmo, supõe uma língua nacional falada universalmente. O calão é a linguagem utilizada pelos larápios a fim de não serem compreendidos pelos outros cidadãos. Mas o problema dos Italianos sempre foi, pelo contrário, o de encontrar uma língua em que pudessem fazer-se entender aos que ignoram o dialecto da sua aldeia.

«O que é terrível é que esse defeito da língua inviabiliza o cómico. Não há nenhuma construção artificial que não seja natural em qualquer canto…» (Stendhal, Roma, Nápoles, Florença em 1817.) Também não encontramos mais nenhuma canção humorística ou divertida, seja o antigo género café-concerto («Le samedi soir après l’turbin», etc.), ou o dos Irmãos Jacques. Muito menos humor misturado com poesia, como em Brassens, ou a caricatura, a paródia, a agressividade, a sátira. A poesia dialectal do século XIX oferece exemplos desses vários tons. Mas não serviu de fonte para a canção popular do século XX. E, além disso, essa poesia nem sempre é popular; é amiúde uma poesia literária escrita em dialecto.

Chevalier ou Piaf, mesmo quando usam apenas semi-calão, usam uma linguagem falada que representa um francês descontraído. É o francês natural, onde se diz «c’est pas» em vez de «ce n’est pas». Mas não há um italiano descontraído, o que suporia um fundo comum em que a descontracção seria uma referência compreensível para todos. A Toscânia, porém, também não produziu nada em termos de canções.

Do ponto de vista musical, as melodias da canção moderna são invenções a partir de um género popular: canto de tom plangente, música de acordeão, danças de baile, etc., cuja técnica de encadeamento é retomada por um Kosma ou um Léo Ferré, conseguindo construir habilmente uma música fácil, aí pondo tanto de si quanto numa música culta.

Desconheço se todas estas razões são boas, mas aquilo de que estou certo é que os sucessos populares italianos não ultrapassam o patamar das produções de um Luis Mariano ou de um Tino Rossi – ou deste Marino Marini, desconhecido em Itália, mas cujo Bambino fez ainda assim escorrer sobre nós a mais representativa das ninharias.

Tradução de: Revel, Jean-François [1958], Pour l’Italie, Paris, Union Générale d’Éditions, 1969, pp. 165-167.

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