Covid-19 | Académico considera que Hong Kong não se preparou para a pandemia

No livro “Coronavirus Politics: The Comparative Politics and Policy of COVID-19”, lançado recentemente, John P. Burns, professor da Universidade de Hong Kong, defende que continua a falhar em Hong Kong cooperação entre o sector público e privado de saúde. O académico acredita que reformar o sistema fiscal facilitaria a missão do sector da saúde no acesso a financiamento

 

Apesar de ter lidado com a SARS em 2003, as autoridades de Hong Kong não demonstraram capacidade para lidar com a pandemia da covid-19. A conclusão é do académico John P. Burns, professor do departamento de política e administração pública da Universidade de Hong Kong, no livro “Coronavirus Politics: The Comparative Politics and Policy of COVID-19”. Recentemente publicado, a obra traça o panorama de como vários países lidaram com a pandemia nos últimos meses.

John P. Burns conclui, assim, que “Hong Kong aprendeu com a sua experiência com a SARS-1” mas “a preparação foi incompleta”. “Com a preparação obtida por parte de especialistas e burocratas, os planos revelaram a falta de reforma de um sistema de finanças públicas [que vigora] desde o período colonial e um sistema de saúde frágil e com pouca capacidade para cooperar com o serviço público de saúde”, pode ler-se.

O académico considera que “o sistema político de Hong Kong provou ser incapaz de produzir líderes políticos capazes de uma mudança”. Ainda assim, esse mesmo sistema levou “à prevenção da ocorrência de divisões políticas profundas e de uma desconfiança em relação ao Governo”.

O HM contactou John P. Burns no sentido de estabelecer um paralelismo com a forma como Macau lidou com a pandemia da covid-19, mas o académico recusou por nunca ter estudado a situação em Macau.

Neste momento, Hong Kong tem a situação epidémica bem mais controlada, mas corre o risco de ter de deitar fora milhões de vacinas contra a covid-19 dada a desconfiança da população. Apesar de ter conseguido adquirir vacinas para toda a população, actualmente contabilizada em 7,5 milhões de pessoas, apenas 1,2 milhões de vacinas foram administradas. Segundo a agência AFP, 19 por cento da população recebeu a primeira dose da vacina da Pfizer-BioNtech, tendo 14 por cento completado a vacinação. Tanto as autoridades de Hong Kong como de Macau continuam a analisar a possibilidade de reabertura de ligações entre os dois territórios, embora não haja ainda uma data concreta para isso acontecer.

Eficiência não chega

John P. Burns recorda que Hong Kong possui um dos mais eficientes sistemas de saúde do mundo, mas que, ainda assim, não conseguiu travar “um surto comunitário descontrolado de covid-19”. Desde Janeiro de 2020, e durante cinco meses, “Hong Kong teve apenas seis mortes por covid-19”. No entanto, “a 26 de Agosto de 2020, Hong Kong registava 4,736 casos confirmados ou prováveis e 78 mortes nas três vagas de infecção por covid-19”.

Apesar da reforma das instituições implementada depois da ocorrência da SARS, continua a prevalecer um sistema de financiamento da saúde que é alvo de críticas do académico.

“Os sucessivos governos em Hong Kong estabeleceram um sistema de saúde público-privado”, em que o sistema público, gerido pela Autoridade Hospitalar (HA, na sigla inglesa), providencia cerca de 90 por cento de serviços a todos os residentes que necessitam de cuidados médicos a um preço “acessível”. Uma rede de 43 hospitais, com 40 por cento dos médicos locais opera este sistema, descreve o autor do artigo, citando dados da HA relativos a 2020. Enquanto isso, o sector privado providencia cerca de 70 por cento de cuidados médicos pagos para residentes, além de que o HA “disponibiliza [os restantes tratamentos] através de clínicas públicas, de novo com a cobrança de uma taxa nominal”.

No entanto, John P. Burns lembra que “o sistema da HA enfrenta uma crónica falta de profissionais de saúde públicos, e os pacientes enfrentam longas listas de espera para serviços não urgentes”. O académico traça depois uma ligação com a falta de reforma do sistema fiscal, uma vez que “apenas 40 por cento da população empregada paga impostos sobre os seus salários e apenas dez por cento dos empresários pagam impostos”.

“Nem os empregadores nem os empregados em Hong Kong contribuem para o esquema de seguros de saúde obrigatório. Think-tanks fundados por empresários argumentam que o sistema público de saúde é financeiramente insustentável tendo em conta os actuais níveis de serviço, acessibilidade e receitas”, pode ler-se.

Embora o Governo de Hong Kong conceda subsídios à HA, e mesmo com os “investimentos substanciais a nível financeiro e de infra-estruturas na preparação da epidemia da SARS-1”, o autor lembra que “o sistema de saúde pública baseado em hospitais é frágil e financeiramente insustentável”.

“Em finais de Agosto de 2020, Hong Kong tinha gerido os três surtos de covid-19 de uma forma relativamente bem-sucedida. Este resultado partiu da experiência de Hong Kong com a SARS-1”, escreveu o autor, alertando, no entanto, para o peso excessivo da burocracia sistemática e “investimento suficiente em saúde para apoiar um frágil sistema público de saúde”.

Um difícil cenário político

John P. Burns destaca também o facto de Hong Kong ter vindo a lidar com a crise pandémica num contexto de “baixa confiança no Governo”, embora “a saúde pública não se tenha tornado, em grande parte, numa questão política”, devido ao espírito comunitário na luta contra a pandemia.

“A experiência de Hong Kong com a SARS preparou a população de Hong Kong para meses de uso de máscara, mais cuidados com a higiene pessoal e distanciamento social”, descreve o autor. “Os hong kongers são pragmáticos e procuram proteger-se a si mesmos e às suas famílias. São geralmente cumpridores da lei e a gestão das regras de combate à covid-19 foi feita de acordo com a lei. O respeito pelos especialistas e a pressão dos pares também contribuiu para este resultado, que foi largamente afectado por profundas divisões políticas, meses de protestos anti-Governo e falta de confiança no Governo”, analisou John P. Burns.

E na China?

O livro aborda também a resposta da China em relação à covid-19 através da análise feita por Victor C. Shih, um economista político autor de várias obras sobre o país. No capítulo “China’s Leninist response to covid-19 – From Information Repression to Total Mobilization”, o autor considera que a forma bem-sucedida como o país lidou com as piores fases da pandemia está relacionada com a forma como a Administração Pública está organizada, ou seja, fortemente ligada às estruturas do Partido Comunista Chinês (PCC).

“Além da estrutura leninista do partido, o esforço para controlar contágios foi apoiado fortemente por organizações pró-estatais e comités comunitários onde o partido decretou a implementação de objectivos relacionados com [o cumprimento] da quarentena. Sem este esforço frenético, os resultados na China teriam sido muito piores”, considera o autor.

Além disso, Victor C. Shih destaca também “o programa de vigilância digital que facilitou a monitorização dos contactos”, embora “não tenha tido um papel decisivo no controlo da covid-19 na China”.

Segundo o autor, as regras do PCC acabaram por desempenhar um papel importante na gestão da pandemia. “Assim que a mobilização para travar os contágios foi decretada, as autoridades locais ficaram de imediato sob uma enorme pressão por parte das autoridades superiores para implementar o regime de quarentena tanto ao nível da província como dos bairros [urbanos]”, conclui-se.

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