h | Artes, Letras e IdeiasTerceiro Acto – Cena 1 Gonçalo Waddington - 6 Mai 20216 Mai 2021 Gonçalo escreve à máquina, sentado na mesinha em frente à janela. Tem uma garrafa de vinho aberta e o candeeiro a petróleo aceso. A janela aberta por onde entra o luar e uma brisa nocturna. Gonçalo escreve com intensidade, a percussão das teclas é impiedosa. Batem à porta e Gonçalo assusta-se, como se acordasse de um pesadelo. Abre a porta a medo. É Valério, sorridente. Traz um saco de compras cheio e uma garrafa de vinho na mão. Ele avança para a mesinha, pousa a garrafa de vinho e tira mais quatro garrafas iguais do saco, para além de três pacotes de frutos secos, dois de batatas fritas e um grande frasco de tremoços. Valério repara no montinho de folhas dactilografadas, ao lado da máquina, e passa-lhes o polegar, avaliando a quantidade de texto produzida. Olha para Gonçalo e aquiesce com um trejeito de boca. Aponta para o montinho, como se perguntasse: “posso?” e Gonçalo aquiesce, também com um trejeitozito, como se respondesse “por quem sois!” Valério fecha a janela, pega no montinho e trá-lo até à sua cadeira de madeira onde se senta a ler. Gonçalo vai até à lareira, pega em duas pinhas e pousa-as lá dentro. Depois cobre-as com bastante caruma e acende-as. O lume leva o seu tempo a aparecer. Depois põe dois toros por cima do lume, não deixando que este se apague. Quando lhe parece que tudo corre pelo melhor, volta à mesa para abrir uma das garrafas de vinho. Pega no saca-rolhas… Valério [sem olhar para Gonçalo] Abre já duas. Gonçalo ri-se discretamente e faz o que o amigo lhe recomendou. Serve dois copos e trá-los para as cadeiras. Dá um dos copos a Valério e pousa a garrafa no chão. Olha para Valério. Valério [sem olhar para Gonçalo] Não me pressiones. [agora fita Gonçalo] Se vais ficar a olhar para mim, paro já! Gonçalo Sim, senhor! Gonçalo levanta-se a vai espreitar a lareira. Os toros ardem bem, nada a apontar. Gonçalo finge que mexe neles com a tenaz, aproveitando para olhar para Valério e adivinhar as reacções do amigo à leitura. Valério Pára! Gonçalo volta aos seus toros ardentes, sem conseguir disfarçar uma gargalhada. Valério Ri-te, ri-te…! Gonçalo vem sentar-se à mesa, olhando pela janela enquanto termina o vinho que tem no copo. Serve-se outra vez e tira a folha que está na máquina e põe-se a ler o que está escrito. Pega num pequeno lápis e vai tirando algumas notas. Quando acaba, vai até à porta do fundo, abre-a e sai de cena, fechando a porta atrás de si. O tempo passa. Valério termina de ler e pousa as folhas na cadeira de Gonçalo. Serve-se de mais vinho da garrafa que está no chão e olha pensativo pela janela. Gonçalo volta a entrar e vem sentar-se ao lado do amigo. Os dois ficam em silêncio durante bastante tempo. Valério [olhando a janela] O Joãozinho Neo-Nazi… Gonçalo Hmm… [pausa] E…? Valério [medindo as palavras] Estás no bom caminho… às vezes. Gonçalo [franzindo o sobrolho] Às vezes…? Valério Calma… deixa-me pensar! [pausa] É interessante… mas fica sempre a sensação de que não acreditas no que estás a escrever e, às tantas, sabe-se lá porquê, boicotas-te… e boicotas a história. [pausa] Mas depois voltas a agarrar-nos… e isso até pode ser interessante… assim como está, digo eu… de boicote, recuperação… novo boicote, nova recuperação… é intrigante, não haja dúvida. As personagens são sólidas, apesar da pouca informação que nos dás delas… e isso é bom. Há mistério… há sensação de local… de sítio… embora estejam numa sala estéril… e isso também é bom. Mas quando estás a chegar às profundezas… a um significado mais alargado… a qualquer coisa mais impenetrável, mas mais absoluta, parece que tens medo… do escuro ou da falta de ar, não faço ideia… e voltas à superfície para nos pregares outra rasteira. Gonçalo O que é que queres dizer com… Valério [interrompendo] Não sei! [pausa] Deixa-me pensar mais um bocadinho… Gonçalo Não se safa com uma segunda leitura? Valério [estranhando a pergunta] Não se trata de safar. [pausa] É bom que na segunda leitura se mantenham as dúvidas e o mistério… Valério saca do seu maço e oferece um cigarro a Gonçalo. Tira um para si e acende o isqueiro. Os dois ficam mais algum tempo em silêncio, saboreando os seus pregos fumantes. Valério [comprometido] Fui sair com a minha aluna… Gonçalo [travesso] É preciso chamar a polícia? Valério [sorrindo] Para já, não. Gonçalo E como é que isso aconteceu? Valério [leva o seu tempo] Foi…estranho. Gonçalo Estranho? Valério Sim… [pausa] Foi ela que me abordou… perguntou-me se eu a queria levar a jantar. Gonçalo Na faculdade? Valério Sim… à saída de uma aula. Gonçalo [sorrindo] E tu, borraste-te todo nas calças… Valério Não… foi bastante natural, por acaso. Gonçalo Natural? Valério [rindo] Sim, natural é uma palavra horrível… mas não me ocorre nenhuma melhor. Gonçalo Eu percebi… [pausa] E foram jantar? Valério Fomos, pois. Valério levanta-se e vai até à porta do fundo, saindo de cena. Gonçalo fica sozinho, contemplando a nuvem de fumo que se espalha pelo tecto da sua cabana nas montanhas.