Paulo Moura, jornalista e autor de “Cidades do Sol”: Na Ásia “há um amor pelos consensos”

Lançado esta semana, “Cidades do Sol – Em busca de utopias nas grandes metrópoles da Ásia”, espelha parte de realidades e sonhos da classe média que habita cidades tão diferentes como Manila, Bengalore, Hong Kong ou as metrópoles chinesas que nasceram do zero, como Shenzhen. Paulo Moura fez-se à estrada em busca de utopias, deixando Macau para mais tarde – o jornalista assume querer estudar melhor o território, e até viver nele, para poder escrever com maior conhecimento de causa

 

A questão da utopia. Deve ter-se deparado com várias utopias, porque as cidades que estão no livro são todas diferentes. Qual a utopia que lhe transmitiu uma mensagem mais forte?

O meu projecto para esta viagem era encontrar as novas classes médias da Ásia, por ser a zona do mundo onde a classe média regista um crescimento maior. Pensa-se que dentro de poucos anos a classe média asiática será mais numerosa do que no Ocidente, além de que a classe média define muita coisa no mundo, os gostos, a cultura popular. Quis conhecer quem são estas pessoas, o que são, o que pensam. No centro de tudo isso, há a utopia: o que é que estas pessoas sonham? Uma das capacidades da classe média é a capacidade de sonhar, que as pessoas que vivem na pobreza não têm. Tentei perceber se também sonham com um mundo melhor além dos sonhos individuais, as utopias. Se têm causas políticas, sociais, ambientais. Se no Ocidente tudo isso está em crise, porque já não se acredita em nada, os ideais estão todos muito desvalorizados, será que a Ásia pode trazer uma lufada de ar fresco ao Ocidente? Era essa a minha busca. Mas isto é uma narrativa de viagem, não é uma busca científica, de investigação. As coisas que encontrei não se podem generalizar.

Mas qual foi o seu critério para a escolha dessas cidades?

As cidades que cresceram muito, as cidades novas, como Manila, Jakarta e Shenzhen. Essas cidades são utopias em si mesmas, porque, por um lado, foram desenhadas. Shenzhen, por exemplo, foi criada do nada. Correspondem a uma utopia de cidade. Aí acontece logo o primeiro choque. Na China, por exemplo, estas cidades que cresceram muito, como Xangai ou Pequim também, foram planeadas como se não houvesse uma experiência de grandes cidades, como no Ocidente, que correram mal, dando origens a problemas de solidão, e ambientais. Hoje, no Ocidente, vemos a questão ao contrário, das pessoas que querem sair das cidades e ir para o campo, vemos a retirada dos automóveis do centro das cidades. A China tinha a oportunidade de começar a construir cidades mais humanas nesse sentido, e não o fez. Esses erros estão agora a ser corrigidos e a explicação dada é que quiseram passar por todas as fases: urbana, industrial, em que cada um gosta de ter o seu carro.

Falou da possibilidade de emergirem ideias novas da Ásia. Depois desta viagem, e deste livro, acredita nisso mesmo?

Algumas coisas que encontrei foram decepções, e outras foram boas surpresas. Há um fenómeno diferente [em relação ao Ocidente], que é o valor que se dá às comunidades, à família. Nas grandes cidades existem os mesmos problemas, mas na Ásia existe um culto das relações familiares e de amizade. Depois há a relação com a tecnologia. Acho que na Ásia é uma relação mais fácil, mais natural, enquanto que no Ocidente é uma relação muito tensa. Estão todos no Facebook, mas há sempre uma relação de desconfiança, do que põe em perigo a nossa privacidade ou o que nos torna mais solitários. O que várias pessoas me disseram na Ásia é que as redes sociais não constituem um perigo de solidão, pelo contrário. Há depois um traço importante que é o amor pelos consensos. Na China, o próprio discurso político fala muito nisso.

Do consenso social, da harmonia.

A palavra harmonia é fundamental em todo o discurso político na China. Nessa viagem entrevistei várias pessoas, até ligadas à política, de forma mais ou menos indirecta, e todos falavam nisso, de que a ideia que a China pretende trazer ao mundo é a harmonia. Mas na realidade significa uma ideia política, o que o Governo chama de “o sonho chinês”, uma alternativa ao chamado “American Dream”. A China tem essa influência legítima, de que não seja apenas uma influência económica, mas também cultural. Mas harmonia leva à ideia de consenso, ao invés do confronto. Falo de pessoas comuns, e olham para a forma de viver no Ocidente como sendo muito conflituosa. Acho que muitas pessoas na Ásia se incomodam com isso, porque parece que vivemos sempre com um grande mal-estar. Há um certo espírito de submissão. Até em Hong Kong, a maior parte das pessoas que contestam acabam por ter um pouco esse espírito, nomeadamente alguns intelectuais com quem falei. Mas é comum em todos os sítios por onde passei. Por exemplo, na Índia.

Esteve em Bagalore.

Sim, fui lá precisamente por ser a cidade que produz software, a Sillicon Valley da Ásia. Entrevistei um rapper muito conhecido, o mais famoso do sul da Índia. E a música dele é muito parecida com a dos rappers norte-americanos. A música dele e as letras apelam ao consenso, à obediência dos jovens. Era radical quando era mais jovem e depois ficou mais moderado. Um fotógrafo em Hong Kong disse-me que na escola os jovens não gostam de querer sobressair ou de competição.

Mas Hong Kong é uma cidade muito competitiva, e o livro aborda o facto de ser um importante mercado financeiro.

Hong Kong é uma excepção, uma cidade original, diferente de tudo o resto.

A certa altura diz que é a sua cidade.

Sim. Não a conhecia antes desta viagem, e confirmei que é daquelas cidades onde me sinto em casa. Isso tem a ver com o facto de estar um pouco em dois mundos, tem um pé no Ocidente e outro na China. Mas estes valores de uma cidade mais consensual e com menos conflitos são muito apelativos no Ocidente. É uma onda que está a surgir em vários pontos do mundo e que vai ser dominante. Nesse sentido a Ásia tem uma palavra a dizer, na ajuda ao Ocidente.

No capítulo de Hong Kong começa pelo grupo social que não pertence à classe médica, que são as empregadas domésticas, que ficam na rua aos domingos porque não têm para onde ir.

Foi espontâneo. Cheguei a Hong Kong a um domingo e deparei-me com aquela realidade que é incontornável. Não se pode fingir que não se vê aquilo. Resolvi falar com as pessoas, mas também acho um fenómeno interessante. Mas é a classe média que as usa como empregadas e isso diz algo sobre essa classe. Há ali condições que não são muito aceitáveis, que roçam a escravatura, e essas pessoas da classe média não se apercebem disso, acham natural que essas pessoas não tenham os mesmos direitos. No Ocidente luta-se para que os emigrantes tenham esses direitos.

Chegou a Hong Kong no primeiro trimestre de 2019, um ano turbulento. Depois de falar com todas essas pessoas, que análise faz do território? Há descontentamento dessa classe média não apenas por razões políticas, mas também económicas, nomeadamente o problema da habitação?

Claro que sim. A situação em Hong Kong é muito complexa. No Ocidente vemos as coisas assim, “aqueles jovens estão a lutar pela liberdade”, mas não é bem assim. Há várias coisas misturadas. E os próprios protestos têm uma história. Tem a ver com uma mentalidade que interpretaríamos como de direita na Europa, face aos protestos anteriores. Mas os nossos conceitos na Ásia são diferentes, e mesmo quando chegamos à Europa de Leste, os ideais de esquerda ou de direita são um pouco diferentes. Quem viveu em regimes comunistas tende a olhar para a direita como uma coisa mais libertadora. Ao contrário de Portugal, que viveu numa ditadura de direita. A China é um país comunista, de esquerda. Esses conceitos baralham-se quando vivemos numa outra realidade. Senti que as pessoas em Hong Kong se sentem sufocadas, pelo facto de a habitação ser cara, e depois há uma espécie de angústia em relação ao futuro.

Macau não é uma metrópole como são estas cidades e talvez por isso terá ficado de fora do livro. Fez apenas uma referência no final.

A minha lógica era de facto ir às cidades emergentes, embora no livro faça grandes desvios. Na China fui a muitas zonas rurais, por exemplo. Mas não quis escrever muito sobre Macau porque não sei o suficiente. Nas outras cidades posso ter o papel de turista, mas em Macau há uma história comum, não sou um mero estrangeiro. Não arrisco escrever de forma leviana. Precisava estudar melhor Macau.

Mas diz que Macau é uma válvula de escape para a China, e o “sucedâneo da utopia”.

Refiro-me ao jogo. Engraçado porque nessa perspectiva de primeira impressão, quando se chega a Macau e à nova zona dos casinos, é um choque. É uma coisa desproporcional, conheci bem Las Vegas mas aquilo [Cotai] é maior. E soa ainda mais artificial. Mas se pensarmos no jogo, é uma ideia de utopia. Primeiro, numa perspectiva individual, é a ilusão de que facilmente conseguiremos ganhar milhões. A utopia é ela própria um sonho que nos parece alcançável. A ideia de válvula de escape é porque os chineses vão a Macau para jogar, gastar o dinheiro, a possibilidade de fuga, de sonhar.

Quando assume que não sabe muito sobre Macau, não é também uma questão generalizada, por parte das pessoas e das autoridades? Macau tornou-se uma coisa longínqua.

Sim. Era importante falar. Houve um processo histórico e, em relação a Macau, quando foi entregue à China, fechou-se um capítulo, deixou de ser tão importante para Portugal. Depois é um território que está longe e sempre houve uma ilusão de que Portugal ainda tem uma grande influência em Macau. Mas é chocante, porque quem chega… pode haver a influência [do português] numa elite, os macaenses ou o Governo, mas eu entrei num táxi, tentei apresentar o nome em português e o taxista mandou-me embora porque não percebia. E foi por isso que não quis escrever.

Mas deixamos o património, a língua portuguesa, que ainda é oficial, uma escola portuguesa.

Mas ninguém fala português na realidade. Há outras antigas colónias onde o português se manteve. É uma realidade histórica complexa. Existe uma pequena marca, apesar de tudo. E pelo que percebi, das conversas que tive, a China valoriza essa relação, apesar de ser o gigante que é, a comparar com Portugal, que é uma formiga. E a aprendizagem do português é apoiada. Apoia-se que Macau seja essa ponte com o mundo lusófono, e nesse sentido parece que Portugal não fala muito nisso. Parece uma coisa exótica, esquecida. E isso deveria ser explorado. Gostava de viver um tempo em Macau para conhecer mais sobre a China também.

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