Artes, Letras e IdeiasA personagem (continuação) Paulo José Miranda - 20 Abr 2021 Começámos na semana passada a ver o livro de Victor Tafner, «A Máquina de Criar Horizontes», em que nos mostra uma personagem, Abib Justus, que é o próprio livro. Personagem que identifica a existência humana com o homem de negócios, e o próprio sentido da vida com a frase «O lucro é a realidade.» Ao ter conhecimento de uma invenção de um amigo, o «descelular», conseguiu fazer com a mesma fosse aprovada em todo o estado do Paraná. Nesse estado, passou a ser obrigatório o uso do «descelular» em todos os veículos, e que a instalação dos mesmos – a não ser os veículos novos – fosse feita na sua rede de oficinas, espalhadas pelo estado. Mas isso não chegava para criar uma nova economia, que era o sonho de Abib Justus, levando-o então a convencer o amigo a criar um dipositivo que bloqueava o «descelular», sem que fosse perceptível pela polícia de trânsito. Assim, as mesmas oficinas que instalavam o «descelular», instalavam depois o seu antídoto, à revelia da lei, de modo a que as pessoas continuassem a conduzir os seus veículos e a falar ao celular. Mas foi a invenção e implementação da sua obrigatoriedade que deu visibilidade pública a Abib Justus, fazendo que aparecesse em todos os meios de comunicação social. E é precisamente em um dos programas televisivos mais vistos em todo o Brasil, e não apenas no estado do Paraná, que o nosso herói prepara o novo movimento: o de implementar a obrigatoriedade do «descelular» em todo o Brasil. Leia-se essa passagem do livro: «Abib Justus responde assim a uma pergunta do apresentador acerca de uma possível interpretação ditatorial desta lei: // – Não podemos ser hipócritas! Ou bem que queremos que não se use o celular quando dirigimos, ou bem que não queremos mas fingimos querer, que é o que a lei nacional propõe, pois todos aqui sabem que ninguém cumpre a lei. Com o «descelular» torna-se impossível desrespeitar a lei… Olhe, vou dar-lhe mais um exemplo que deveríamos adotar: hoje a lei não permite que se ultrapasse uma velocidade máxima de 120 km/h, certo? Então porque permite que sejam vendidos carros que atingem 200 e 300 km/h? Deveríamos exigir que todos os carros não ultrapassassem os 120 km/h! Ou então jogue-se a lei no lixo. Carros com mais cilindrada deveriam ser vendidos para uso exclusivo em pistas de corrida, mais nada. // Como grande retórico que era, Abib Justus sabia que toda e qualquer polémica traria dividendos ao seu império, como ele próprio gostava de chamar em privado a este grupo financeiro. A questão de os carros serem vendidos como motores que não permitissem uma velocidade superior a 120 km/h fez furor por todo o Brasil. É impressionante ver como facilmente as pessoas se dividem acerca de coisas que desconhecem e das quais nunca sequer ouviram falar. Um pouco por todos os jornais e redes sociais a discussão rebentou. Dos carros com controlo de cilindrada até à proibição de venda de refrigerantes, que se sabe serem prejudiciais à saúde, ou de alimentos chamados de junk food, foi um salto. A esquerda, a direita, os ecologistas, os vegetarianos e os defensores dos direitos dos animais enchiam páginas e páginas online exigindo que o governo federal tomasse a posição do estado do Paraná, com a diferença de radicalizar a posição de controlo sobre o que nos faz bem, e cada qual com sua razão e interpretação, como é comum por aqui em matéria de política. Não demorou mais de um mês para haver manifestações em Brasília pressionando o governo a proibir a venda de refrigerantes, de bebidas alcoólicas, de “junk food” e até de carne animal. Havia já quem exigisse que Abib Justus tinha o dever de se candidatar à presidência do Brasil, em nome dos brasileiros que estão fartos de hipocrisia. É sabido que os tempos de crise são pródigos em forjar heróis e posturas radicais.» Esta extensa passagem do livro parece-me necessária para mostrar claramente a dimensão da personagem Abib Justus e como ela acaba por ser a encarnação da própria retórica e corrupção do Brasil. Mas Abib não tinha ambições políticas. Tinha, isso sim, ambições de controlar a política do Brasil. E o passo estava dado. Como continua o narrador, Abib sabia que perante a pressão do povo, o governo iria ceder na obrigatoriedade nacional do uso do «descelular» em todos os veículos. Pois, como se pode ler à página 134: «Era impensável exigir que as fábricas de carros colocassem no mercado brasileiro veículos com limite de velocidade! Mas exigir que esses mesmos carros viessem todos instalados com descelular era bem mais fácil de concretizar. Este era pelo menos o raciocínio de Abib Justus, que não estava longe da verdade. Veja-se o que ele mesmo pensava, nesta fala que tem com o amigo: as pessoas estão aí, diante de nós esperando apenas para serem usadas! Elas são como cachorros, precisam de um chefe de matilha, que se imponha a eles e os conduza. O povo precisa de mão forte! Mas a mão forte, hoje, não é a mão que segura a arma contra o povo, é a mão que segura a ingenuidade e ignorância do povo, despejando nas TV e jornais uma ilusão de bem-estar, possível a todos, bastando para isso vontade e honestidade. Esta é a arma! E é aqui que os políticos falham, mas eu não. Porque o povo desconfia de quem os quer governar, mesmo votando neles. Aquilo que estou fazendo não vai a votos, é conquistado na raça, no cabresto. Impomos a lei que nos convém, mostrando que, mais do que para nós, é para o bem do povo.» Leia-se, quase cinquenta páginas adiante: «Em São Paulo criou-se a Associação “Descelularizar As Estradas”, que em menos de um ano tinha já uma representação significativa de apoiantes. E o grande orador na reunião em que comemoraram o primeiro ano de existência foi Abib Justus. Recebido em apoteose. E começou o seu discurso com: // – O mundo pertence-nos! O mundo é dos cidadãos e não de quem eles elegem. […] Primeiro descelularizamos o Brasil, depois desmotorizamos o país e por fim descorrupcionamos o território todo delimitado pelas fronteiras!» Esta personagem, Abib Justus, criada em 2012, acaba por ser uma antecipação do Brasil actual. Não encarna o presidente em exercício, Abib Justus representa aquele ou aqueles que controlam o chefe de estado e a maioria dos políticos em Brasília. Leia-se mais uma passagem do que Abib Justus pensa: «Ganhar dinheiro é beleza pura. Mas inventar um mundo para tirar dinheiro do mundo existente é místico, aproxima-nos de Deus como mais nenhuma experiência humana. Estou a alargar o espírito.» Abib Justus é a personagem mais perversa e, simultaneamente, a mais banal da literatura brasileira, porque encarna a triste história do seu país.