Da Certeza

Não fomos programados para nos descobrirmos enganados acerca de qualquer coisa. Platão descreve a filosofia e o acto de filosofar como um «apego indespedível à verdade». Para o ponto de vista humano, a verdade é o oxigénio que permite toda a amplitude dos nossos registos, desde o mais quotidiano e aborrecido ao mais épico e inusitado. A verdade é o chão, a cor, o que sentimos e como o sentimos, a luz do amanhecer, as fórmulas matemáticas da infância tragadas à colherada, o preço das coisas, o princípio, o meio e o fim. Estar equivocado comporta graus de insuportabilidade distintos, dependendo do quão fulcral na constituição da identidade do sujeito – coisa que dificilmente sabemos e ainda mais dificilmente podemos prever – é aquilo sobre o qual nos encontramos «três pontos ao lado», para trazer novamente Platão à conversa.

Pelo que percebo perfeitamente as pessoas que se agarram às suas crenças como se elas constituíssem o chão sobre o qual caminham; na verdade, é isso mesmo que sucede com as «proposições empíricas fossilizadas» como lhes chamava Wittgenstein, naquele opúsculo tardio «Da Certeza», escrito sobretudo como resposta ao «A Defense of Common Sense», um ensaio assaz estúpido de Morre, publicado em 1925. As mais diversas crenças, a maior parte delas absolutamente inconspícuas – por fazerem parte do ponto de vista, tal como as lentes dos óculos «fazem parte» do olhar – são o fulcro do sentido que constituímos diacronicamente e o diapasão da certeza pela qual nos guiamos, das tarefas mais elementares às mais complexas.

A tensão indespedível que nos liga a essas crenças é fundamental para a sobrevivência. Imagine-se um tipo a duvidar da firmeza do chão, da salubridade da água da identidade diacrónica daqueles que ama? Não obstante, há que evitar confundir a necessidade absoluta dessa tensão para a verdade (pela certeza) com qualquer tipo de critério capaz de aferir a lógica do mundo. O facto de eu me sentir absolutamente convencido de que X é verdade ou certo não torna X um ou outro. Esta modalidade de certeza é, aliás, do domínio do operacional: constitui e mapeia o mundo sem se preocupar em inquiri-lo do ponto de vista filosófico (o que levantaria ao ponto de vista natural problemas capazes de entravar o quotidiano constituído que este tão arduamente defende). O senso comum, como bem aponta Wittgenstein, não precisa de defesa: ele é desde sempre o seu melhor e mais abrangente amparo. Tecer uma defesa do senso comum sem procurar determinar a sua constituição, âmbito e função dentro do ponto de vista é aportar uma solução para algo que, dentro do ponto de vista do senso comum, nunca foi um problema. É uma tolice. Moore 0 – Wittgenstein 1.

O que não se percebe de todo é a razão pela qual uma panóplia de criaturas descendentes do bas-fond das ideias dos anos setenta (os newagers encravados entre o regresso de uma Índia em regime de pousada na praia e a incapacidade de dissiparem os efeitos do excesso de drogaria psicadélica consumida) se convence de que o amor (em forma de apego indespedível, como enunciado) que sentem por determinada tolice converte automaticamente essa tolice em algo com valor epistemológico. Não, o tarô não tem qualquer valor de verdade; a homeopatia não é uma alternativa à medicina (o que esta pandemia demonstrou amplamente, para quem ainda tinha dúvidas); os cristais são apenas composições da natureza e não portais para qualquer tipo de realidade vibrando ao lado da nossa; o teu interesse por medicina tradicional chinesa não te converte em médico de porra nenhuma – quando estiveres doente a sério nada do que estudaste te ajudará; não há conspiração 5G para te infectar o cérebro com o que quer que seja – para além de já toda a gente que quer saber por onde e o que fazes o saber, por conta do telemóvel através do qual lutas todos os dias contra o capitalismo e a opressão – ninguém quer saber do teu cérebro ou de ti. És apenas um átomo na constelação de big data através da qual o marketing poderá caminhar uns degraus em direcção ao panteão das ciências exactas. Não és especial. Quase ninguém o é. Respira e abre mão das tolices em que encontraste refúgio ou, pelo menos, admite a sua natureza epistemológica: no melhor dos casos, são apenas um jogo onde te distrais e vais aliviando o peso dos dias. Não curam ninguém, nunca o fizeram. Deixa-te de merdas.

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