Está quase, já passou

Daqui a pouco, a Primavera. Que faremos então com tanto sol?
É mais fácil confinar no Inverno; mais intuitivo. É mais fácil respeitar as regras de distanciamento social, as recomendações de que se evitem contactos desnecessários, as proibições das festas. A Primavera – onde ela existe – foi sempre uma época de renovação e de festejo; está ligada a bonança das colheitas, à fertilidade, ao engordar do dia. Os animais reaparecerem na Primavera e pontuam a paisagem onde tudo quanto é verde se estende em direcção ao sol e ao céu. Tudo é mais suportável na Primavera.

Esta poderá ser a segunda Primavera de que seremos subtraídos. Pouco me importa que me levem o Inverno e boa parte do Outono; está frio, chove. Podem ficar com os poucos dias de clemência meteorológica. Já a Primavera é outra coisa. É como acordar de um longo sono salpicado de sonhos oblíquos e estranhos estados de vigília e não poder sair da cama para celebrar a vida na igreja das coisas.

Quando vivia em França, com os meus pais, uma boa parte da infância, numa cidade do interior ladeando uma cordilheira de vulcões dormentes – Clermont-Ferrand – onde o clima era particularmente inclemente – Invernos nevosos e Verões infernais, a Primavera, muitas vezes tardando em aparecer até despontar, tímida, nos últimos dias de Março, como se tivesse prurido em chegar, era a única altura da vida da cidade em que o corpo parecia estar em sintonia com o ambiente.

Eu estava sempre doente no Inverno, amiúde no Outono, e calhavam-me sempre pelo menos duas sessões de amigdalite no Verão. Na Primavera descobria o que era ser como os outros miúdos – sempre muito mais robustos do que eu. Na Primavera éramos todos imortais. Na Primavera o meu pai atrevia-se a tirar-me da segurança de casa aos fins-de-semana para fazermos piqueniques à beira-rio com a trupe de emigrantes com que partilhávamos pão e histórias da terrinha. Íamos pescar trutas – de que eu fingia gostar à mesa mais do que na verdade gostava –, ver a procissão dos bichos a caminho das múltiplas peripécias da vida (isto é um gaio, filho, isto é uma lebre, vês como têm as pernas muito mais longas do que as dos coelhos, isto é…), e no caminho de regresso, o meu pai ia apontando – para desespero da minha mãe, que insistia em que ele olhasse antes para a estrada – onde tinha trabalhado, onde tinha comido a melhor perdiz estufada, onde tinha bebido uns copos a mais. Era a topografia do adulto de meia-idade antes da chegada da mulher e filho, a segunda adolescência numa terra em que uma estranha liberdade eclode do anonimato.

Tenho poucas lembranças da minha infância – felizmente. Essas poucas lembranças são bastante desproporcionais em relação aos sítios de onde elas vêm e ao tempo que neles passei. Estava quase sempre na cidade, enfiado em casa ou na sala de aula. Lembro-me vagamente da casa em França, uns pormenores difusos, o sítio do fogão, o padrão do papel de parede, a cor com que pintaram as janelas. Da escola lembro-me ainda menos; umas rampas que tínhamos de descer ou subir para entrar nas salas de aulas, um pátio enorme onde as crianças mais façanhudas se entretinham a humilhar as crianças mais reservadas, duas freiras extremamente meigas que eram o meu porto de abrigo quando as coisas não faziam sentido ou o almoço era fígado guisado.

Do que me lembro bem era do cheiro acre da terra na Primavera, do meu pai procurando os meus dedos magros e frágeis para me ajudar a passar por um curso de água, dos gaios para que apontava com minúcia de coleccionador. Da Primavera que tudo renova.

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