Artes, Letras e IdeiasNada está perdido Gonçalo Waddington - 11 Fev 202117 Fev 2021 PRIMEIRO ACTO CENA 1 Uma pequena sala escura com paredes empedradas e chão de madeira escura. Ao fundo, dois toros robustos ardem na lareira. Encostado à lareira, um fogão de ferro envelhecido com uma cafeteira ainda a fumegar; do lado oposto, um balcão de madeira com um lava-loiça de pedra onde alguns pratos jazem amontoados. À direita de cena, uma janela com as portadas abertas para uma noite escura. Nem árvores, nem estrelas. Encostada à janela, uma pequena mesa com uma máquina de escrever, algumas garrafas de vinho e um pequeno candeeiro a petróleo. Na esquerda alta, a porta da casa e o bengaleiro, de onde pendem dois casacos de neve e alguns cachecóis. Há alguns quadros pendurados nas paredes: algumas naturezas-mortas, um oficial exibindo as suas condecorações e uma aberração de circo, sem braços e sem pernas, equilibrando uma bola na ponta do seu grande nariz. Ao fundo, na direita alta, uma porta para quem se quiser aventurar para outras divisões. Há livros e jornais espalhados pelo chão da pequena divisão. Gonçalo está sentado numa cadeira de madeira, ensimesmado, de costas para o fogo. Por cima dele, um lustre dourado e envelhecido com algumas velas acesas. Ao seu lado, estão três garrafas de vinho vazias, pousadas no chão. Valério está ao pé da mesa, abrindo outra garrafa com um saca- rolhas. As labaredas recortam as suas sombras intermitentes nas paredes. Gonçalo É mais como se fosse um sopro, agudo… mas às centenas. O calor que me rodeia é insuportável. [pausa] E estou sozinho… Valério Sozinho? Gonçalo Sim. [pausa] Quando penso nisso… é o que me parece, sim. Que estou sozinho. Só eu e o inimigo… não há ninguém do meu lado. Ou melhor, ninguém a meu lado… porque mesmo que haja, seja quem for… ninguém me poderá valer nessa altura… é cada um por si, cada um consigo próprio e o inimigo, que é comum a todos. Valério E o calor, vem de onde? Gonçalo Dos fogos… dos rebentamentos. A floresta arde, os morteiros continuam a silvar… Valério Ah, é numa floresta! Gonçalo [surpreso] Sim. 1 of 3 Valério Não tinhas referido. Gonçalo Hmmm… o sol está quase a pôr-se. Valério Ajuda a elevação. Gonçalo Sim. Valério pousa o saca-rolhas na mesa e cheira o vinho pelo gargalo. Enche o seu copo e prova o vinho. Depois, vem sentar-se num velho cadeirão, ao lado de Gonçalo. Este bebe o resto que tem no copo e Valério enche-o com o novo néctar. Valério Os morteiros continuam a silvar… Gonçalo Sim. Valério E…? Gonçalo Eu encolho-me… no meio de uns arbustos. Tapo os ouvidos… [pausa] A mistura dos cheiros, o sangue queimado e o metal a ferver…[pausa] é… Valério Nauseabundo? Gonçalo Não… não diria tanto. É… [pausa] perturbador. Valério Hmmm… Gonçalo E é precisamente nessa diferença que está a questão. [pausa] Se fosse nauseabundo, eu continuaria vergado, a vomitar o medo… mas o cheiro do metal ardente… [pausa]… impele-me… Valério A olhar para cima? Gonçalo Sim. [pausa] E é nesse momento que acontece… o relâmpago interior, fugaz… Valério O êxtase? 2 of 3 Gonçalo O êxtase, sim. Os sentidos… o conflito dos cheiros, as balas que me sopram ao ouvido, os silvos dos morteiros… uma sobra gigante cobre-me… olho… e lá em cima, no céu alaranjado… um bombardeiro desaparece no meio das nuvens depois de largar a carga mortal… e algures entre o sol e as nuvens há uma… [sorri]… uma presença, uma paz… [pausa] Encho-me de felicidade… e nunca estive tão desprotegido como estou ali, naquele momento. E sou invencível. Os dois amigos ficam em silêncio durante algum tempo, repisando aquele episódio nas suas cabeças e beberricando o vinho. Valério Isso parece um sonho molhado de um neo-nazi! Os dois desatam a rir, Valério entorna o seu vinho. Gonçalo Du bist… du bist… du bist ein schwein! Valério Nein, nein, nein… ich bin ein untermenschen! Gonçalo Nein, nein, nein! Mein Gott… du bist ein arschloch! Valério limpa o vinho que caiu em cima de alguns livros, passando a manga da camisola sobre eles, enquanto espreita os títulos. Depois da limpeza, dá-se conta da quantidade de livros espalhados pela pequena divisão. Valério Tens livros suficientes para ficares sozinho e nunca te sentires sozinho… [pausa] Isso é perigoso! Gonçalo Hmmm… Valério serve-se de vinho, repara que Gonçalo ainda tem o copo a meio e mesmo assim enche-o até quase transbordar. Gonçalo Falei-te do primeiro conto que escrevi? E que foi recusado por uma revista? Valério Ainda havia revistas a publicar contos e foste recusado? Fala-me disso! Gonçalo Primeiro vou mijar. Ele não se levanta. Valério acende um cigarro e dá duas longas baforadas. Oferece o maço a Gonçalo. Este tira um cigarro e acende-o, dando uma longa baforada. Os dois em silêncio, recordistas em apneia de fumo.