Boi metal

À beira de um novo ano como de um abismo, de um anseio fundamental. De uma porta. O novo ano a rimar com animal. Proust com cafeína, tigre com Borges e boi com ano mental.

Volto ao bicho. Explicar o bicho como adivinhar o que aí vem.

Precisamos, humanos, da adivinhação genérica, cautelosa ou expectante do mundo, em cada fronteira de um ciclo. Chegar à beira de uma etapa com a motivação de um reinício. A adivinhação, a astrologia, os oráculos de culturas milenares e outras formas de previsão do futuro, sejam elas a resposta de uma divindade, o fruto de uma inspiração, o “enthousiasmós”, que significa ter deus em si, ou o estrito cumprimento de ritos, espelham uma espécie de fé confortável na predestinação. Desocultada essa e desvendados os olhos de quem pergunta. Também outras leituras do destino, do Tarot ao I Ching, na abordagem de Jung, para quem a mente era de carácter simbólico, remetem para a tentativa de compreensão através do olhar mergulhado no inconsciente. O ser em busca de um entendimento de si mesmo por meio de arquétipos. Como o inconsciente a revestir-se de um carácter mediúnico.

Explicar o Boi, o touro, o búfalo, o bicho, impossível como explicar a vida. Tantos e tão diferentes como os dias. Há que amar os animais difíceis como os dias e os anos. Cheios de dentes e garras afiadas. Um búfalo é um boi que gosta de água e cobrir-se de lama para refrescar, resistir. Depois uma camada gretada e seca assemelha-o a um pedaço de terra. Enorme torrão domesticado. Com uma gravidade espelhada no semblante ilegível e todo o estar gravitacional. Compacto como mundo físico. Preso ao solo como uma erupção da terra. E a sonhar na água, quando não trabalha de cabeça baixa. Os chifres como uma balança. Se há justiça na dedicação do esforço e da superação

Explicar o touro. A impotência face ao acontecer. Um arrastão que se consome em força. Porque o touro não é um boi como os outros. Tem a revolta de se ver na arena. Como nós. A possante imposição do que é terreno e, espicaçado, com os cascos a raspar ávidos em fúria no chão.

Situamo-nos nesta arena, às vezes destemidos de tão pouco saber. Penso na investida do animal em fúria. Touro a investir e a morrer na arena. Fúria redonda, força bruta e determinação. Mas penso naqueles cornos pontiagudos ou boleados a colher em frente. Também gravitacional e preso à terra, como uma erupção. Vulcânica. E como tal lhe sai ruidosamente pelas ventas o sopro da ansiedade que o cerca e provoca. Como humano suspiro fundo em momento de desespero. Vida livre e predestinada a este momento. Do desafio à humilhação e anulação. Para catarse, o espectáculo do outro. Na sua irracionalidade de toneladas. Manipulada por quem conhece dele o que não conhece de si, às vezes. Porque ele também não conhece de si. Há que amá-los, esses bichos corpulentos que nascem domesticados, nascem planeados e predestinados. Também eles sem saber a quê. Um sentido e um destino que só se dá a ver no momento do cumprimento. Da arena. Nada sabem de si, mas estão. E resolvem a prova do momento que surge sem escapatória, na raiva do reagir. Com todo o seu peso, em frente sem contudo poderem fugir ao desfecho final. Brutal metal. Às vezes revejo-me nele, no bicho. Quando estou em mim e o vejo em mim e revejo-me nele além de mim, vejo-o como se vê o mundo e o outro.

É a primazia do instinto sobre a objectividade. Um pujante avançar na rotina dos dias. No confuso evoluir. Ou desenhar o ano. E é o minotauro que me espera ao fundo e os labirintos. Espero até ao fim do labirinto, no fim do labirinto. E até ao fim do tempo. E não mais, porque mais não pode ser. Mas ficará uma voz a ecoar. Ou o eco, somente. E depois, um outro ano. Animal.

Este. O escarlate de Veneza a correr nas veias, tinta de séculos com cor de vasos e de versos, esse brilho insensato do sangue perdido. Sangue de boi é o nome da cor de sombra e do sangue do animal. Virado do avesso em couros, tecidos e tintas. A oxidação do sangue a escurecer como uma profética coloração de que a morte recobre os seres. Com poemas escondidos em vida por detrás da pele. Um golpe e é cor. Fica bem na morte, o vermelho vivo, que esmorece e se ensombra, como a vida se esvai dos olhos do animal. E são as coisas da vida e da morte, que nos trazem os anos. Da morte se faz tintas e tingimentos. Da vida explorados os sentimentos, fingimentos e outras formas de fazer úteis os pigmentos. Gosto dessa cor como sangue da terra. Sangrada do boi terra quando se esvai. O avesso da vida se faz morte e mesmo a morte se recicla. Em memória, também. Coisas estranhas em círculos cruéis. De vida. Os anos que se sucedem, os dias, os animais. E os que nós somos. E que não sendo iguais, somos sobretudo como eles entre eles, diferentes, vivos e mortais.

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