A vida é outra

Quando o escritor catalão, Alfredo Mendizabal, escreveu o ensaio «A Vida É Outra», onde nos mostra que a vida humana depende da ficção, não poderia prever que o livro se tornasse um best-seller. Numa entrevista polémica dada ao jornal madrileno El País, disse: «Nunca ambicionei escrever um livro que fosse um sucesso de vendas. Tudo isto é um tremendo disparate. Estou em crer que aconteceu apenas porque as pessoas estão descontentes consigo mesmas. Ou então não entenderam nada do que escrevi.» Adiante, nessa mesma entrevista, diz: «É evidente que o livro é irónico. […] E quero acreditar que as pessoas têm bem presente a ironia, mas o que vejo no dia-a-dia impede-me de dar esse passo.» Estas palavras podem levar a pensar que o escritor desprezava não apenas o sucesso, mas também os seus leitores. E de algum modo isso não deixa de ser verdade.

Mas passemos ao livro. «A Vida É Outra» começa assim: «Uma vida em si mesma não tem interesse para outra vida. Uma vida só tem interesse para outra vida numa ficção, numa construção. Quem nunca se viu a si mesmo a não dar a importância a outrem? O que é um outro? O que é alguém? A vida de outrem só tem interesse a partir da minha vida concreta, do meu sujeito concreto, da construção que faço. A vida precisa de foco, de enfoque, de uma ficção.» Logo desde o início, Mendizabal conecta vida e ficção. Mas rapidamente o livro chega à sua tese mais radical: a de que a vida humana depende da ficção. É a ficção que concede realidade à vida humana e não o contrário. Leia-se: «Aquele ali é alguém de quem gosto, por esta e por aquela razão, mais nada. Razões que eu atribuo. E sem essa subjectividade o outro é uma pedra. O “não matarás”, essa construção máxima do humano, é a tentativa de ultrapassagem da necessidade do subjectivo, porque, no fundo, sabemos desde sempre que os humanos não podem depender dos humanos. A humanidade não pode depender de algo tão frágil como a subjectividade. A subjectividade precisa de algo mais, de um “a mais” que o humano em si mesmo não tem. A vida humana depende da ficção.» Ao longo do livro defende também que a razão de cada vez nos interessarmos menos pela leitura ficcional, em detrimento de outras, deriva do facto da escrita ficcional actual – principalmente o romance – nos mostrar muito claramente esta nossa condição de ficção e isso não agradar ao leitor. O leitor preferia ficar a assistir à ficção a desenrolar-se como se fosse fora de si e não parte dele mesmo.

Antes da publicação do livro que se tornou best-seller, Alfredo Mendizabal escrevera apenas 3 livros, embora todos claramente provocadores: «A Merda dos Outros», «A Política e os Porcos» e «Tudo Puta». No primeiro, partindo da célebre frase retirada da peça de teatro de Jean-Paul Sartre, «Entre Quatro Paredes», «O inferno são os outros», tece um irónico comentário acerca das massas, principalmente nas redes socias e nas caixas de comentários dos jornais. Escreve: «As nossas quatro paredes, o nosso inferno é o rectângulo do computador. Podíamos escolher espreitar sites onde pudéssemos aprender a limpar-nos, mas escolhemos espreitar sites onde nos sujar. Poderíamos escolher escrever palavras belas, elogiosas ou edificantes sobre os outros, mas preferimos escrever o contrário de tudo isso. E, na maioria das vezes que escrevemos palavras elogiosas, elas enojam. Porque não representam uma atenção verdadeira acerca do que se está a escrever. Só a atenção pode conferir autenticidade ao que se escreve sobre outrem.» No segundo, um ensaio politico-literário acerca de «Animal Farm» de George Orwell, estabelece uma relação entre os políticos actuais e os porcos, onde estes já não são os piores, pois são manietados por aqueles que têm dinheiro, os humanos, numa clara alusão às multi-nacionais e aos multi-milionários que decidem sobre os destinos do mundo. Leia-se uma passagem: «Os porcos governam a quinta, mas sob as ordens obscuras dos humanos. Não de todos, apenas daqueles que têm dinheiro suficiente para comprar porcos.» Por fim, em «Tudo Puta», estabelece uma relação entre a humanidade e a prostituição. Escreve: «Puta e prostituta é igual. Dizer puta ou prostituta, pelo menos aqui no meu texto, é o mesmo. Fora dele não quero saber. Puta é quem vende o seu corpo.

E com esta venda surgiu a ideia mais perigosa do universo: a ideia de alma. Ao fazermos com que o corpo não fossemos nós, mas uma propriedade, tivemos de arranjar algo em nós que nos conferisse a identidade. Vem deste princípio, princípio de puta, a queda da humanidade.» Ora, como é bem de ver, são títulos e livros que muito dificilmente chegariam a best-sellers e nem isso passava pela cabeça do escritor. Assim, quando «A Vida É Outra» chega à vigésima primeira edição, o escritor sente-se traído. Como ele mesmo diz na entrevista ao El País: «Os cabrões [os leitores] vingaram-se. Esfregaram-me o dinheiro nas ventas, como se me dissessem: “agora vê lá se te calas!” E têm razão. Resta-me calar.» A verdade é que, desde 2012, altura da primeira edição de «A Vida É Outra», nunca mais publicou nada.

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Teresa Almeida Rocha
Teresa Almeida Rocha
19 Jan 2021 07:13

Obrigada ao Paulo José Miranda. Os seus artigos são sempre excelentes. Já é um hábito.