Ariana Furtado, professora: “A escola tem de servir para educar para a empatia”

Ariana Furtado tem 44 anos de idade, é professora e coordenadora da Escola Básica do Castelo em Lisboa. É uma mulher com um sorriso contagiante, ideias fortes e um enorme sentido de justiça
Gostava que começasse por falar do projecto na sua escola “Com a mala na mão contra a discriminação”.

Este projecto nasceu de muitas pessoas, sobretudo da Simone Andrade do Teatro da Voz. A Simone estava com uma oficina nesta turma de 4.º ano que se chamava “como ler os direitos humanos”, onde todos faziam uma viagem pelos direitos humanos e como eram aplicados em vários países. Como é que as crianças olhavam para a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o que é que no dia a dia delas seria diferente se a levassem a sério. E numa das sessões estivemos analisar os manuais escolares que abordavam os “ditos” descobrimentos e… aquilo foi tão arrasador em termos de linguagem histórica que eu fiquei chocada. Eu que já sou professora há tantos anos, ao ver a forma como a Simone abordou o tema e a facilidade com que os meus alunos respondiam às perguntas que ela fazia – a uma nova visão que ela trouxe para dentro da sala de aula, e não a visão apresentada no livro de Estudo do Meio sobre a classificação dos povos ao longo da história, no mundo – olhei para a minha turma, com miúdos vindos de várias partes do mundo, uma turma absolutamente heterogénea com miúdos da Ásia, de África, do continente americano, e percebi que nós estamos a fazer praticamente tudo errado nas escolas. Se queremos educar crianças para a cidadania, para a intervenção, para a discussão de ideias, para serem capazes de emitir uma opinião, e os manuais escolares só apresentam uma visão – e temos de ser francos, o ensino em Portugal está muito assente nos manuais escolares – tem que ser por aí que nós temos de começar a desconstruir um pouco e a dar espaço para eles encontrarem formas de conseguir emitir opiniões, fazer perguntas.

Está a dizer que os professores estão formatados para passar apenas informação?

Eu não quero generalizar não é nada disso, mas nós passamos informação mas não construímos caminhos para que eles possam dialogar, conversar sobre as questões. Ora, é isso que faz com que nós enquanto civilização avancemos, discutir sobre o que estamos a aprender. Mas não há tempo nas escolas para a discussão. É tudo muito formatado e o que os manuais apresentam “é o que os manuais apresentam” mas se apresentam informação, ela tem que ser correcta.

Os manuais que falam dos descobrimentos enaltecem apenas os feitos dos portugueses e nunca falam das diferentes culturas que já existiam nessas terras e a escravatura é apresentada como uma simples troca de produtos.

Exactamente, os povos europeus chegaram e já lá estava vida, cultura, civilizações, diferentes formas de organização; algumas bem mais avançadas do que as europeias e que não foram valorizadas. Nos manuais escolares europeus não há acesso a essa informação. No manual de Estudo do Meio da minha turma, os escravos continuam a surgir como um produto, como disseste, e muitas vezes o que eu sinto é que nós professores não somos capazes de provocar a discussão e a dúvida no aluno, não se discute se é correcto em termos de direitos humanos, se na altura já era correcto ou se não era, e isso é muito importante.

E surgiu assim o projecto.

Sim, depois juntei-me a várias pessoas, algumas ligadas ao associativismo, com as quais ia partilhando estas ideias e criamos um conjunto de oficinas sobre o tema “as relações entre todos” na sala de aula, nos recreios, fora da escola, na vida. Como é que podemos olhar-nos e discutirmos ideias. Se determinada situação faz sentido – mais do que ser correcto ou não correcto – se faz sentido ou se não faz sentido; se evoluímos, se não evoluímos; porque é que as coisas acontecem, porque é que as coisas não acontecem… e foi assim que este projecto começou.

Quer fazer uma viagem rápida pelas oficinas?

Uma das oficinas era feita com “Role Plays”. Muitos destes alunos pertencem a famílias que estavam a passar grandes problemas, por exemplo ao nível do arrendamento das casas em Lisboa e assim criamos algumas situações em que eles tinham que dramatizar como é para uma família negra, uma família asiática ou cigana conseguir arrendar uma casa numa capital como esta. E fomos discutindo estas situações que levavam as crianças a pensar sobre “como é que vive o outro”, será que a vida é fácil para o outro? Também é uma forma de educar para a empatia e percebermos “será que sou só eu que vivo estas condições?”. Outra era “como é que eles olhavam – por exemplo – para os mapas?”. Porque nos nossos mapas nas escolas a Europa vem sempre destacada, a Europa que é dos continentes mais pequenos vem destacada com uma importância tal que quase que nos induz que é o maior continente do mundo. E não é. Estamos às vezes tão euro centrados e tão confortáveis, que não conseguimos sair desse sítio.

Já que falou na habitação, há uma tendência das sociedades em geral, para criar zonas de habitação específicas para as pessoas negras. Os discursos populistas e nacionalistas usam como arma de arremesso seres humanos que gostam de apresentar como símbolos de fraqueza, doença ou perigo. Os alvos são na sua maioria essas pessoas que já sofrem de discriminação. Assustam-na estes movimentos de ódio?

Assusta muito, mas não me surpreende. (pausa) Quase que me custa dizer isto mas é um pouco a essência da natureza humana. (pausa) Eu sei que estou rodeada de pessoas – e quando falo da essência humana não quero ser ofensiva mas tenho que ser brutalmente directa – pessoas que convivem comigo, que falam comigo, que são capazes até de me elogiar diariamente, de me pedir ajuda mas que são pessoas cheias de preconceitos. Bom… como é que eu coloco isto… isto é um assunto muito delicado… a forma como este partido (Chega) que ninguém quer dizer o nome, habita neste terreno… é tocando nos mais vulneráveis, nas pessoas que estão mais expostas à fragilidade, e em todas elas tocando em termos de pele: nas pessoas brancas mais vulneráveis dizendo “olhem quem mora ao vosso lado e vos está a tirar regalias”… nós negros, ciganos, asiáticos, que moramos cá, que crescemos cá ou nascemos cá e não somos nunca reconhecidos como tal.

Pode-se falar de crueldade.

É mesmo a forma mais cruel de se aproveitar de uma situação… através de uma pessoa em dificuldade. Porque não tenhamos dúvidas, as pessoas que votam nesse partido – eu vou falando com muitas, mesmo muitas pessoas – são pessoas que passam por muitas dificuldades financeiras e económicas. E em termos de estudos, têm o nível sócio cultural que se considera “aceitável” na sociedade hoje em dia – seja lá o que isso for – e são pessoas que acham que é “o outro” que lhes está a roubar espaço, que lhes está a roubar rendimentos e é assim que estes partidos crescem, é assim que estes partidos ocupam espaço na sociedade.

Aproveitam-se sempre de situações de crise.

Porque as pessoas retraem-se, fecham-se sobre si próprias e tornam-se egoístas. (pausa) É humano, quase que me atrevo a dizer isso. E é por isso que a escola tem este papel tão importante para mim. Porque a escola também tem de servir para educar, para educar para a empatia, para mostrar que quando sofremos, às vezes, sofremos todos, não é só um determinado sector da sociedade ou uma determinada cor de pele ou uma determinada pessoa. Sofremos todos. Claro que quando um partido como este, que está na Assembleia da República e tem imensa visibilidade televisiva, diz que há pessoas que por terem determinada cor ou determinada etnia são mais prejudiciais à sociedade do que outras, há outras pessoas que tendencialmente vão achar que sim, que essa pessoa está a lutar pelo bem delas e isso… é quase… humano. E como é que se combate isso? É muito difícil, é muito duro.

Há um estudo da European Social Survey que diz que em Portugal quase 50% da população continua a achar que as pessoas podem ser inferiores em função da cor da sua pele ou pela sua pertença étnico-racial ou cultural. Será herança do nosso passado colonial?

É uma herança pois. E não nos podemos esquecer que nós estamos, enquanto país, com um atraso enorme a todos os níveis, porque vivemos tanto tempo fechados no medo… acho que a ditadura portuguesa fez um dos seus trabalhos mais profundos nas ditas colónias porque conseguiu até convencer uma grande parte das pessoas que viviam lá, que eram inferiores.

Há muitos filhos que herdaram dos pais essa maneira de ver o outro?

Até hoje é uma mentalidade que ainda perdura. Desculpam-se com frases do tipo “ai agora por tudo e por nada é tudo racismo?! Tenho imensos amigos negros e gosto de música cigana. Claro que se tiver de viver com uma família negra ao lado prefiro não viver.” E apresentam uma lista de razões.

Tais como?

São muito barulhentos… e os cheiros… a comida… as pessoas dizem-te isso assim. Já me disseram várias vezes, frontalmente, essas coisas. Há pessoas que às vezes falam comigo como se não vissem a minha cor quando é aquilo que eu acho que de mais profundo tenho, e quando falo de cor é porque acho que a cor transporta muito daquilo que eu sou como pessoa. A minha pele fala por mim, sou muito transparente nisso. Mas às vezes há professoras minhas colegas que falam comigo como se eu não fosse negra e não tivesse nascido em Cabo Verde. Como se eu não tivesse crescido a viver também muitas dificuldades para poder continuar a estudar, conseguir entrar na faculdade e no mundo laboral. Dizem coisas como “oh pá os africanos têm isto e aquilo, gostam muito de dançar”, e eu pergunto “que africanos, mas estás a falar de que africanos (riso) mas quem são esses africanos de que falas?”

Para as pessoas em geral, alguém negro é imediatamente africano, não é europeu ou americano?

Sim. E as coisas que são ditas às vezes são muito agressivas. Faço questão de traduzir as diferentes formas de ser, numa mais valia para os meus alunos. Mas eles continuam a viver em sociedade e alguns têm famílias onde podem ouvir impropérios ou “já não suporto aquela preta” ou “aquele cigano não sei quê”. Isto só muda quando toda uma sociedade estiver aplicada de forma séria. Quando educarmos para o antirracismo. Quando esta questão for levada a sério e de forma transversal e para isso temos de implicar seriamente todos os professores, os pais e todos os adultos que estão com crianças, todos.

O próprio Estado.

O Próprio Estado que já devia ter começado – já vai muitíssimo atrasado. É preciso uma condução séria na forma como são abordadas estas questões com os alunos. Por exemplo, a questão do tratamento que é dado aos nomes dos alunos. Se nós recebemos um aluno africano ou asiático e estamos a falar para ele e para os pais e dizemos “ai eu não percebo nada do teu nome não sei como é que se pronuncia, é muito difícil”… não estou a dizer que isto é racismo, mas é uma forma de negar a diferença. É uma questão de respeito básico e nesse aspecto o colonialismo fez um excelente trabalho por nós. Conseguiu hierarquizar de forma muito vincada os povos.

Há estudos que provam por exemplo, que 80% dos alunos dos PALOP são orientados para os cursos profissionais, e dos 20% que fazem outro trajecto apenas 3% podem chegar ao ensino superior. São desigualdades estruturais no acesso à educação que, por sua vez, têm implicação no acesso ao emprego qualificado. Como professora e coordenadora do pré-escolar e 1º ciclo, que tem a dizer sobre isto?

As dificuldades ao longo do caminho são muitas, muitas e começam primeiro na escola. É preciso intervir muito cedo. Quando essa questão chega a um encaminhamento para as vias profissionais, nas bases já esteve tudo mal. Logo no primeiro ciclo nós começamos a assistir – por exemplo – a alunos que têm explicação de português, de matemática e a muitas famílias negras que não têm possibilidade de o fazer. Depois a competição é enorme logo desde pequeninos, o que é péssimo. O estímulo para a competição é péssimo, é mau em todos os sentidos. Deve haver um estímulo à aprendizagem, à troca de ideias, à entreajuda, à empatia e o resto vem por si. Se tivermos predispostos enquanto crianças a ajudar o outro, a acompanhar o outro na sala de aula a aprender com o outro estamos também a estimular o nosso colega.

Para que avancemos juntos.

Exacto, para que avancemos juntos como pares, e a autoestima deles sobe. E muitos desses pais, dessas famílias negras não têm – como já disse – possibilidade de pagar explicações, não têm como acompanhar os filhos nos trabalhos de casa, acompanhá-los nos inúmeros desafios que às vezes surgem na escola para serem feitos em casa, porque não têm tempo. Porque se levantam às cinco da manhã para trabalhar, porque acumulam 3 e 4 empregos por dia. E essas crianças quando voltam à escola e vêem que alguns colegas tiveram tempo para descansar, que tiveram tempo para fazer os trabalhos, para ler um livro, que alguém leu um livro com eles… é óbvio que isso já está a indicar um caminho; por isso é que a intervenção no primeiro ciclo tem de ser muito importante a esse nível. Porque depois, vão-se somando dificuldades pelos ciclos fora, ao ponto em que o aluno chega ao 9º ano e já não se sente capaz.

Sempre teve turmas muito heterogéneas? Alguma história que se destaque?

Tive uma aluna, uma menina muito resistente; saiu do Congo com o pai e o irmão, conseguiram passaporte português através de uma ascendência dele e conseguiram chegar a Portugal. Notava-se nela uma maturidade muito diferente das outras crianças, tinha oito anos, mas uma maturidade muito diferente das crianças da idade dela. Tinha uma história de vida lhe deu uma necessidade… estas crianças olham para a escola como uma arma, ela sentia que a arma dela para sobreviver era o conhecimento. O conhecimento era a arma para poder argumentar com o mundo.

Para terminar, gostava que nos dissesse porque escolheu fazer esta entrevista no Teatro?

Na procura para dar voz a todos os alunos considero que a arte e a cultura são importantes para o brotar da imaginação, da consciência crítica e libertação de tudo o que temos cá dentro. Procuro levar sempre os meus alunos ao teatro, ao museu, a distintas oficinas e o Teatro da Voz tem sido um parceiro incrível e de construção e desconstrução de tudo o que pensamos saber.

ENTREVISTA Teresa Sobral
FOTOS Inês Oliveira

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