Obituário | Mio Pang Fei, pintor e professor de artes, faleceu sexta-feira aos 84 anos 

Mio Pang Fei, expoente máximo da pintura em Macau e do chamado neo-orientalismo, faleceu na sexta-feira com 84 anos. A morte do homem que ensinou uma geração de novos artistas a partir da década de 80 e que revolucionou o mundo das artes de Macau encerra uma era na arte contemporânea, considera Alice Kok. Várias personalidades do mundo artístico falam da “sorte” que Macau teve em acolher Mio Pang Fei

 

[dropcap]“A[/dropcap] arte é inútil, mas os trabalhos artísticos são úteis.” É desta forma, sentado num carro, olhando Xangai, a sua cidade natal, que Mio Pang Fei fala da sua percepção do que é arte, filmado pela lente de Pedro Cardeira. Dono de uma carreira imensa no mundo das artes, percursor da arte contemporânea em Macau, Mio Pang Fei faleceu na sexta-feira aos 84 anos, segundo fonte da família à TDM Rádio-Macau.
Considerado o pai do neo-orientalismo, o seu traço único serviu de inspiração a uma geração de pintores, além de que o seu ensino das artes deixou uma marca que jamais se apagará.

Ao HM, Alice Kok, pintora, curadora e presidente da associação AFA – Art For All Society, considera que a morte de Mio Pang Fei representa “o fim de uma era”. Agora virá uma outra coisa, resta saber o quê.
“Mio Pang Fei foi, sem dúvida, o artista mais importante na fase da formação da arte contemporânea em Macau, que começou nos anos 80. Macau teve muita sorte em ter tal artista e professor de artes.”

Mas não foi só Macau que ganhou com a chegada de Mio Pang Fei. O próprio artista descobriu um lugar onde pôde pôr em prática todas as experimentações e dúvidas que tinha sobre o que era arte e qual o caminho que deveria seguir enquanto artista.

Nascido em Xangai em 1936, Mio Pang Fei estudou na Universidade de Belas Artes de Fujian, tendo-se dedicado à caligrafia chinesa. Era a única forma de escapar e de se manter ligado ao mundo das artes, numa altura em que o artista já pensava de maneira diferente. Mio Pang Fei chegou a ser acusado de práticas contra-revolucionárias por demonstrar um grande interesse no modernismo que se fazia no Ocidente. Esteve preso e sujeito a trabalhos forçados.

“As pessoas brindavam e desenhavam o Presidente Mao. Mas eu estava a fazer algo diferente. Destruí os quadros porque não podia mantê-los, tinha muito medo. Estava a pensar em qual caminho deveria seguir. O Ocidente já tinha abraçado a arte abstracta. Fizeram-no muito bem, mas nós não”, disse Mio Pang Fei sobre este período, no documentário de Pedro Cardeira.

Alice Kok dá conta dessa liberdade criativa que Macau proporcionou a Mio Pang Fei. “A arte contemporânea começou a ganhar forma em Macau nos anos 80 e foi nesse período que ele experimentou muitas ideias ligadas ao modernismo, a ligação entre o Ocidente e o Oriente, e depois de muitos anos de experimentação chegou ao novo orientalismo. O território precisava de Mio Pang Fei. Ele veio da Revolução Cultural e em Macau pôde experimentar as suas ideias sobre a arte. Fez isso com tal energia que se abriu uma porta para o público, estudantes e jovens artistas.”

Uma das últimas entrevistas que deu, provavelmente a última, foi em Abril deste ano à TDM Canal Macau, no âmbito de uma reportagem intitulada “A China Vermelha”. Nela, Mio Pang Fei volta a recordar os seus tempos de estudante de belas artes.

“Quando estudava na universidade, aprendemos o Realismo de [Gustave] Courbet. Courbet foi o autor introduzido pelo professor. Só isso. E eu pensei ‘isto não está certo’. Disse que Courbet esteve activo em meados de 1850. Estava na universidade na década de 50, então fui à biblioteca ler e investigar, para ver o que aconteceu nesse século. Secretamente li sobre eles, tirei notas e comecei a experimentar.”

O início de algo

Sorte e “benção” são outras palavras usadas para descrever o trabalho e vivência de Mio Pang Fei no território. Konstantin Bessmertny, pintor russo radicado há vários anos em Macau, disse à TDM Rádio Macau que “Macau foi abençoado por ter tido Mio Pang Fei”.

“Era difícil comunicar com ele por causa do meu chinês e do inglês dele, mas senti que era um dos pilares do edifício cultural de Macau. Mas ele trazia uma espécie de saber oriental, a sua técnica, a dimensão, a escala, a apresentação”.

Carlos Marreiros, arquitecto, artista plástico e ex-Presidente do Instituto Cultural, disse também à TDM Rádio Macau que Mio Pang Fei foi pioneiro por “misturar expressões tradicionais chinesas e contemporâneas ocidentais renovando um discurso de uma contemporaneidade assinalável para a época e ainda com força hoje em dia”.

Marreiros recordou o facto de Mio Pang Fei ter fundado o Círculo de Amigos da Cultura de Macau, juntamente com outros artistas do território, tendo deixado um “legado muito grande”.

“Ele foi um combatente no sentido das ideias e da formação artística porque era uma pessoa extremamente pacífica, serena, inteligente, extremamente culto”, acrescentou Marreiros, que considera que Mio Pang Fei deve ser considerado um pintor de Macau, apesar de ter nascido na China.

“Ele está em Macau desde 1983. Gosta de Macau, assume Macau, representou Macau em tantas exposições e ele adorava Macau assim como Portugal onde tinha casa e ia sempre que podia”, disse.

A Bienal de Veneza

A última grande exposição de Mio Pang Fei em nome próprio aconteceu no Galaxy, em 2012, mas em 2015 foi seleccionado pelo Museu de Arte de Macau (MAM) para representar Macau na 56.ª Bienal de Veneza. Filipa Queiroz, à data jornalista da TDM Canal Macau, entrevistou Mio Pang Fei na cidade italiana.

“Quando o encontrei lá, junto a uma das suas instalações, a que representava o período da Revolução Cultural, o brilho nos seus olhos aliado ao orgulho de toda a família e comitiva em volta era absolutamente comovente. A entrevista em si foi curta porque, além de discreto, Mio Pang Fei acusava cansaço da viagem, mas disse logo que, apesar de não sair da China há muito tempo, e estando debilitado em termos de saúde, não podia faltar”, contou ao HM.

Filipa Queiroz recorda também que Paolo Baratta, presidente da Bienal de Veneza, “não escondeu o entusiasmo” pelo momento. “Lembro-me que disse que Macau tinha realmente acertado com a exposição do ‘grande maestro’ na maior mostra internacional de arte do mundo. Para mim Mio Pang Fei personificava as ideias de força e liberdade e acredito que perdurem para sempre na sua obra.”

Pedro Cardeira, realizador do documentário sobre a vida e obra de Mio Pang Fei, conheceu o pintor e professor em 2010. Com ele criou uma relação de amizade graças à proximidade entre famílias, uma vez que o seu cunhado foi aluno de Mio Pang Fei.

O realizador recorda o facto de ele “conhecer a arte ocidental tão bem como a arte chinesa”. “Mio Pang Fei surge num contexto muito especial, no início dos anos 80, quando Macau começou a ter uma transformação e abertura para as artes. Os artistas de Macau eram ainda amadores e quem queria fazer alguma coisa tinha de sair de Macau. Não havia uma escola de artes, um movimento, e a vinda de Mio Pang Fei para Macau veio criar isso”, frisou ao HM.

A rodagem do documentário foi feita em Xangai, onde Mio Pang Fei esteve com amigos que também sofreram as consequências da Revolução Cultural. Só depois desse convívio é que o pintor ganhou “coragem” para contar a sua experiência para a câmara.

“Foi muito difícil ele falar desse período. Não queria fazer um documentário sobre a Revolução Cultural, mas insisti porque isso foi muito marcante na obra dele, foi traumatizante, mas afectou todo o seu percurso em Macau. Quando ele fez a exposição ‘A Condição Humana’ é evidente que está lá esse episódio da vida dele”, destaca Pedro Cardeira.

Por ter iniciado um movimento novo numa época específica, será difícil que algum artista venha a substituir ou a criar um legado tão importante como o de Mio Pang Fei, aponta o realizador. “É difícil vir outro artista que consiga chegar a esta posição, porque o contexto já vai ser diferente. Isso faz com que Mio Pang Fei seja único”, conclui.

Em 2017, Mio Pang Fei recebeu a medalha de mérito cultural atribuída pelo Chefe do Executivo de então Chui Sai On.

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