Henrique Senna Fernandes, escritor, no dia em que comemora os seus 80 anos: “Vale sempre a pena sonhar”

Em todas as entrevistas, muito fica por escrever. Por exemplo, as pausas, as inflexões, os olhares que se trocam entre entrevistador e entrevistado. Nesta fica muito mais. Fica, sobretudo, a incapacidade de traduzir fielmente o amor pela vida que a presença de Henrique de Senna Fernandes invoca. E a certeza de que a vida, mesmo aos 80 anos, continua a ser atrozmente… curta.

[dropcap]8[/dropcap]0 anos. Como se sente?
Sinto-me bem e sinto-me feliz, porque tenho amigos e parece-me que as pessoas têm um carinho especial por mim. Chegar aos 80 anos, afinal, é viver alguma coisa.

Muitas memórias?…
Quando penso no passado… nasci em 1923, no ano em que começou a construção do porto de Macau, o chamado Porto Exterior… havia nessa altura tantas esperanças no porto como as que há hoje em relação à ponte. Esse foi um sonho que se esfumou e ainda bem porque queriam dar cabo da Praia Grande.
Passados quatro anos fizeram aqui uma feira comercial, na zona onde hoje está o D. Bosco. Havia um lago, com barcos e… muitos namoros. Eu ainda era um miúdo, lembro-me que me encantava ganhar uns gatinhos de vidro.

Macau parece ser uma terra que, ciclicamente, tem grandes esperanças. A sua experiência diz-lhe que vale a pena sonhar?
Vale sempre a pena sonhar apesar das desilusões enormes que sofremos. Nós somos uma comunidade resistente, adaptamo-nos bem às circunstâncias…

Lembro-me que em 1999, foi algo pessimista, mas depois…
Foi uma crise terrível. A China era uma incógnita, por isso existiam grandes inquietações em toda a gente. Muitos foram-se embora, tal era o medo ou desejo de segurança. Antes da transição, quando vim de uma conferência da Lusofonia no estrangeiro, em Setembro, é que tive a noção mais perfeita de que o nosso mundo ia desaparecer, que ia ser um corte. Era uma coisa muito dolorosa, ser estrangeiro na sua terra. Quando nos encontrávamos na rua, as pessoas olhavam para mim e perguntavam “Fica?”. “Fico”, respondia eu. Havia necessidade de companhia naquele sofrimento, de partilha. Nessa correu em Macau que eu tinha partido. Uma prima afastada minha disse-me quando me viu na rua “Voltou?”, “Voltei.”, “Ai qui medo, julgava que o primo ia-se embora e nos deixava sós”. Vimos partir muita gente.
Eu não podia abandonar Macau.

Porquê? Gosta muito desta terra?
Gosto muito. Estou habituado a esta vida e mais que isso. Sem me querer armar em herói, se partisse sentia que traía esta terra. Não estou a censurar ninguém, mas foi isso que senti: que traía a minha terra, que traía amigos que não podiam sair. Pior: traía os meus antepassados todos, os ossos que estão em São Miguel. Nunca quis que fossem trasladados, porque eles só conheceram esta terra.

Não se arrependeu de ter ficado?
Por amor de Deus, nunca! Estou habituado a altos e baixos. Agora Macau está muito bem. A nossa comunidade é considerada e temos recebidos muitas manifestações dessa consideração, quer pela nossa comunidade quer pelo mundo português. Esta foi a vitória da RAEM sobre mim. Respeitaram os meus direitos, respeitaram todas as minhas opções, entre elas a nacionalidade, ninguém me impôs nada e sou cidadão de Macau, isso é que é importante. Temos os mesmos direitos que os chineses, excepto em termos de exercer o poder. Aí teríamos de rejeitar uma nacionalidade para aceitar outra. Mas pude exercer a minha profissão, pude escrever, pude encontrar os amigos e isto (olha à volta da sala do Clube Militar onde nos encontramos), este ambiente. A resposta da RAEM convenceu-me.

Sentiu-se sempre respeitado?
Sempre!

O senhor também já conhecia muitas das pessoas que hoje ocupam altos cargos na RAEM?
Alguns sim, outros não. Ganhei a minha vida como advogado, mas nunca tive a clientela dos grandes. Não ganhei um real dos grandes. Os meus colegas tiveram mais sorte, tinham mais saber que eu…

Quer dizer que sempre lidou com outras classes sociais?
A minha clientela sempre foram pessoas de classe média ou baixa.

Isso ajudou-o na sua escrita?
Ajudou muito. Repare que as minhas heroínas são todas pobres. A minha vida… vou contar uma coisa um pouco aborrecida. Há muitos anos, quando ainda era muito novo, rejeitei uma moça por ela ser pobre, não ter muitos estudos, justamente por ela ser de uma outra condição…

…“A Trança Feiticeira” será o seu exorcismo dessa situação?
“A Trança Feiticeira” e outros escritos… ela mais tarde, muito mais tarde, ela deu-me uma grande bofetada. Encontrou-se comigo e mostrou-me que estava bem. Aproximou-se de mim e disse-me “vou comprar um livro teu”. Sabia francês, inglês; essa mulher que desprezei, surgia-me agora toda considerada e é ela que me dirige a palavra, com toda a subtileza e ternura, mostrando-se ainda muito simpática. Ela tinha tido uma grande paixão por mim e eu fui, simplesmente, um bandido.

Não acha que nós em Macau somos muitas vezes bandidos… sem culpa?
Explique-me melhor o que quer dizer com isso, com essa dos bandidos sem culpa…

É também devido à pequenez do meio em que vivemos, que não temos coragem para assumir determinadas atitudes mais nobres…
Essa é uma grande verdade. Por isso é bom ter 80 anos, não ter de disfarçar, não ter de dar satisfações a ninguém. Não tive a minha vida fácil…

Isso ficou-se a dever ao que foi acontecendo ao longo da história?
Sim. Valeu a minha tenacidade de querer vencer sempre.

Deixe-me falar do seu personagem Francisco Frontaria. Não o terá escrito como exemplo de um macaense que pode cair muito baixo mas depois acaba por voltar ao de cima, ajudado pelo elemento feminino?
É isso. Não gostei nada do filme “Amor e Dedinhos do Pé” exactamente porque a minha ideia foi a de uma redenção. Alguém que cai e se redime através de uma mulher que o próprio insultara. Isto é um bocado autobiográfico daquilo que fiz.

As suas heroínas são mulheres abnegadas?
Mulheres abnegadas mas com personalidade.

Voltando ao filme…
O Joaquim de Almeida não era o actor para aquele personagem. Ele é um bom actor, mas muito duro, não podia ser o Francisco Frontaria que era um personagem muito mais suave, mais borga, não tão distante. No meu livro há a redenção, no filme não há, ele continua o mesmo patife, só lhe dá três dias e depois vai-se embora. Com o dinheiro dela. Tudo muito forçado.

Esse tipo de mulher que descreve nos livros… é essa a sua ideia de mulher macaense? Como descreveria a mulher macaense?
A mulher macaense tem os seus defeitos… e muitos, mas, tal como a chinesa, pode ser a melhor mulher do mundo. Lembro-me da minha mãe, uma das senhoras mais bonitas de Macau, quando perdemos tudo acompanhou sempre o meu pai, em todos os seus transes, em toda a sua vida. A mulher macaense quando gosta… adapta-se facilmente, faz um homem feliz. Apesar de ser diferente nalgumas coisas, por causa da educação, é muito semelhante à mulher chinesa. Está-se bem!

Existe uma sensualidade própria da macaense?
É muito difícil explicar as nuances que só no momento uma pessoa compreende. Pode ser a melhor mulher, mas também a pior mulher, se não gosta do homem com quem está.

Num dos seus contos no livro “Nam Van”, passado com uma mulher num comboio na linha de Cascais, sente-se alguma decepção com a mulher ocidental. Tratou-se de um episódio ou de algo mais profundo?
De um episódio. Aquela rapariga era muito bonita. Foi uma desilusão enorme quando me pediu cem escudos. Naquela altura as mulheres eram muito recatadas, foi um choque para mim. Hoje é tudo muito diferente. No meu tempo viviam num ambiente muito fechado, muito católico, a Igreja tinha uma força muito grande. Os padres dominavam. Entre a Quaresma e a Páscoa não podia haver bailes, as raparigas vestiam de roxo. Lembro-me de uma muito atraente, vestida de roxo, com os cabelos acobreados.

Não era preciso exagerar tanto: a mulher deve ser alegre, decente, boa conversadora e boa companheira. Mas agora parece que até existe a moda das mulheres dizerem palavrões. Disso não gosto. Algum recato também tem um certo encanto.

No mesmo livro também descreve a Rua da Felicidade, nomeadamente através do personagem Maurício. Quer-me falar disso?
O Maurício é uma pessoa que não vou dizer quem é. Foi ele quem me apresentou a Rua da Felicidade. Na altura eu era um rapaz novo e pobretanas. Ao passar na rua viam-se as meninas. Mas havia uma diferença entre o rés-do-chão e o primeiro andar. Em cima ficavam as cantadeiras, as pei-pa-chais, em baixo ficavam as prostitutas, sentadas na porta a partir do fim da tarde, muito pintadas. Todas as ruas daquele bairro eram assim. A Rua do Gamboa, a Rua do Bocage, os hotéis, uma grande área. Quem descia a Almeida Ribeiro, à esquerda era para a elite, onde estavam as caras; do outro lado, na Rua das Estalagens e Rua Nova do Comércio, onde ainda hoje existe uma zona de prostituição, ficavam as mais baratas. Mas tudo era muito diferente do que se passa hoje.

Nos seus livros retrata a sociedade de Macau até aos anos sessenta. Porquê?
Os anos 30 e 40 é a minha época favorita porque era o apogeu de Macau, das famílias macaenses. Muitas delas, muito importantes, desapareceram. Foi a guerra que deu cabo de tudo, apesar de nos anos 50 se ter vivido bem. Havia festas, recebia-se bem. Em 1966, com o 1,2,3, a emigração enorme, uma grande sangria. Já tinha começado antes. No final dos anos 50, Hong Kong abriu as suas portas a Macau, para depois as fechar. Nessa altura mais de 600 rapazes e raparigas saíram de Macau. Foi muita gente para uma comunidade pequena como a nossa. A maior parte nunca voltou. Foram para outros sítios: para o Brasil, para a Austrália, para os Estados Unidos.

Neste momento o que faz continuar a escrever?
A necessidade de escrever e de lembrar certas situações de Macau que se desconhecem.

O seu novo livro passa-se em que época?
Nos anos 60, na transição do Macau antigo para o Macau da STDM. Hoje já é outro Macau.

O Macau da RAEM?
Este é mais difícil de descrever. A RAEM é muito nova, ainda não conseguimos ver as consequências, a mentalidade desta juventude.

O que diria a um escritor de Macau que esteja a começar?
Que não esquecesse o passado, mas que enfrentasse os factos presentes. Macau está a mudar muito. Não sabemos o que vai ser. O meu Macau está cada vez mais distante. Que mentalidade será esta que está para vir? Não sei, não faço ideia. Um escritor hoje deve agarrar isso, compreender. Eu já não posso fazer isso, já não sei falar do que se passa hoje. Não vejo o que se passa à noite, não frequento lugares nocturnos. Tem de se falar das novas relações que se estabelecem, entre chineses de cá e de lá, etc., etc.. Eu já não tenho tempo para isso. Esta época ultrapassou-me. Eu admito isso. Já não posso ter aquela visão…

E o que diria à comunidade macaense, à sua comunidade?
Quanto ao futuro estou um pouco apreensivo. A Escola Portuguesa tem de existir. Se nos quisermos salvar, tem de existir, tal como o D. José da Costa Nunes. Fui professor durante trinta anos, sei que a escola tem muita influência sobre a mentalidade de uma pessoa. Conheci irmãos chineses que frequentavam escolas diferentes, uns a portuguesa, outros a chinesa. As mentalidades divergiam. A escola é importante para marcar uma identidade própria e o macaense até hoje é muito cioso da sua identidade.

Então acha que não se pode deixar morrer a Escola Portuguesa?
Não pode morrer! Se a deixarem morrer são todos traidores! A existência da ideia do mundo português é muito importante em Macau. A própria China… é engraçado: os chineses daqui rejeitaram o português, mas Pequim exige o contrário. Isso é um perigo para os chineses locais, porque os do Norte sabem falar português. E falam bem! Quem é que vai dominar as duas línguas oficiais? É fácil de perceber. Quem é que vai mandar? Os chineses de Macau têm de esquecer essas questões do colonialismo.

Mas houve ou não aqui um colonialismo feroz?
Não houve nem podia haver. Se houve foi para os macaenses: nos anos 30, não podíamos passar de primeiro oficial, não podíamos chegar a lugares de chefia, não podíamos ir para o exército nem para a marinha. Os chineses não se ralavam. Os portugueses fizeram muitas asneiras. Alguns chineses que mais tarde aqui formaram uma elite, de boas famílias, aprenderam português. Mas não houve visão: o governo não os aproveitou. Eles diziam: qual é o incentivo, não confiam em nós.

Acha que o chinês de Macau é diferente do chinês da China?
Muito diferente. E mesmo do de Hong Kong, não há confusão, estes têm a mania que têm o mundo na mão e que são mais civilizados. Falam de Macau com um certo desdém que não se justifica. No fundo também é inveja porque não têm o património histórico, nem humano, que nós temos. O chinês de Macau é mais lento, é o ambiente português, latino, que o influenciou. Uma vez disse que era o mais latino da China. Não falam a língua portuguesa mas habituaram-se ao ritmo de Macau.

Hoje até existe talvez uma maior identidade. Dantes diziam apenas que eram chineses, mas hoje já referem que são de Macau.

Aos 80 anos, o que lhe deu mais alegrias?
Cometi muitos erros, mas atribuo-os à minha generosidade, que as pessoas confundiam com fraqueza e abusavam. Diminuíram-me e fui traído pelos amigos. Como foi possível que alguns amigos, a quem dei tanta alma e coração, me tenham traído? Fizessem coisas absolutamente ignóbeis. Deixemos isso.

O que me deu mais alegrias é ainda ter amigos, de toda a parte receber abraços. Não é consideração oficial mas espontânea. Nos últimos anos, recebi muitas demonstrações de amizade. Depois há a minha família, fui sempre o homem mais influente, estando presente em todas as crises.

Os meus alunos também me enchem de enlevo. É muito consolador, lembrarem-se das minhas lições e agradecerem-me ter-lhes aberto os olhos para muita coisa. É um privilégio.

Gostaria de remediar alguns erros do passado. Mas, ao fim e ao cabo, valeu a pena viver.

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