Sambando na lama

«Did you ever get the feeling that the world was a tuxedo and you were a pair of brown shoes?»
George Gobel (comediante americano)

[dropcap]P[/dropcap]ara começar uma confissão breve: muitas vezes – tantas vezes – serve esta vossa casa para me refugiar dos dias, mesmo quando olho para eles e digo o que vejo. Numa declaração de intenções pífia, feita desde o inicio destas crónicas, disse que eram as pequenas coisas que me interessavam para aqui – os olhares, os gestos, os modos, os sentires. Era a rua e não o mundo que me apetecia conversar.

Ainda é verdade. Mas existem alturas em que as pequenas coisas engrandecem, tomam dimensões inimagináveis e atacam os nossos planos de auto-imunidade. Não podemos escapar a este fenómeno que por falta de melhor termo técnico designaria de “vidinha”, assim, à Alexandre O’Neill. Só que esta vidinha que agora me fez refém não deve ser desprezada: existe e sobretudo em alturas mais difíceis. O emprego que escasseia, o dinheiro que não existe, os compromissos que se devem manter e não é possível – tudo redunda em tristeza, angústia e outras emoções mais ou menos desagradáveis. E uma coisa vos garanto: é difícil escrever com distanciamento sobre este assunto porque aqui o distanciamento social não é possível. Os sentimentos ficam exacerbados, os amigos impacientes e nós – ou eu, já que aqui estou – apenas vemos a luz ao fundo do túnel como sendo um comboio que avança na nossa direcção.

São dias de uma impotência triste, viscosa. As pessoas ficam estranhas porque o mundo nos agride no que é mais próximo e rasteiro mas nem por isso menos real. É difícil resistir e cada um terá a sua estratégia de sobrevivência. Mas combater este inimigo torna-se mais complicado porque justamente se confunde com o quotidiano. Não se trata de tragédia, uma perda em que se pode fazer o luto. Trata-se dos dias da semana que de repente ganham dentes e nos atacam sem piedade.

E o que fazer, então? Há algum tempo um enorme amigo dizia para deixar de pertencer aos que acham que o mundo já não nos quer. Desta vez, enganou-se: sou eu que não quero este mundo e mais ainda nestas alturas. Parafraseando o enorme João César Monteiro, não é o mundo que me expulsa: sou eu que o condeno a ficar. E assim concluo que a única e pobre resistência é não desistir. Sair da trincheira com medo das balas, mas sair. Só que não assim, resignado e cabisbaixo. Não: a atitude também pode salvar. E outra vez recebo consolo nas canções – esta, Cantando No Toró, do grande Chico Buarque: «Sambando na lama de sapato branco, glorioso/ Um grande artista tem que estar feliz/ Sambando na lama e salvando o verniz». Contra a lama, o sapato branco da nossa existência e que se lixe. Se alguém morrer, pelo menos será a morte do artista.

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