Perspectivas VozesA Covid-19 e o medo Jorge Rodrigues Simão - 27 Ago 2020 “Pandemic is not a word to use lightly or carelessly. It is a word that, if misused, can cause unreasonable fear, or unjustified acceptance that the fight is over, leading to unnecessary suffering and death.” Dr. Tedros Adhanom – director geral da OMS [dropcap]O[/dropcap] medo é um alerta que nos ajuda a reagir face a potenciais perigos, activando o corpo e a mente para desenvolver os recursos necessários para enfrentar ou evitar uma ameaça, bem como para a prevenir. Assim, mesmo perante uma emergência como a propagação da infecção COVID-19, ter medo é absolutamente normal e saudável. O primeiro passo para ultrapassar o medo é aceitá-lo, o segundo é geri-lo e o terceiro é enfrentá-lo. Porque os medos não devem tornar-se excessivos e descontrolados, especialmente face a uma pandemia, onde a invisibilidade do inimigo pode desencadear reacções fortes e levar ao pânico. Nem devem transformar-se em fobias, um poderoso condicionamento da nossa liberdade de agir e do seu impulso infeccioso. Neste momento, o medo e a ansiedade habitam na alma e no corpo de todos, forçados a abdicar de muitas liberdades e oportunidades para nos proteger deste inimigo impiedoso e invisível. Nestes meses, muitos falaram, tentando dar conselhos, alguns estão a minimizar mostrando-se na rua sem protecção recomendada, outros vêem nesta emergência uma situação apocalíptica. Em todos, porém, o medo e a sensação de perigo encontraram um lar e guiaram o nosso comportamento. Gerir o medo significa, antes de mais, ter informação correcta, não só sobre o perigo actual (neste caso a ameaça de infecção, o modo de transmissão, a duração, o risco de graves consequências sanitárias e económicas), mas também sobre as emoções que nos afectam. Emoções que infelizmente são desagradáveis e causam grande desconforto, mas que podem ter um valor fundamental para nos orientar para comportamentos que nos podem salvar. Sem ter a presunção de oferecer receitas improváveis para se tornar corajoso e fazer desaparecer o medo, é necessário que se compreenda o mesmo nas suas expressões, nas suas funções e nos seus mecanismos e como distinguir o medo “pequeno”, o normal, do “grande”, patológico, a que mais correctamente podemos chamar de fobia. Partindo da premissa de que não é a intensidade da emoção experimentada que distingue o medo da fobia, mas a experiência e o contexto em que ocorre, é preciso agarrar e compreender as implicações emocionais do medo em situações não urgentes. As pessoas têm de aprender técnicas comportamentais e práticas sobre como gerir o medo e lidar com a fobia, mesmo que, no caso de perturbações fóbicas, a ajuda de um profissional seja essencial para reconquistar a liberdade perdida. É importante conhecer as implicações emocionais que a propagação do vírus tem induzido em todos, especialmente nos seus componentes de medo e ansiedade, tornando-nos temporariamente fóbicos por necessidade. Além disso, é urgente que as pessoas sejam ajudadas a gerir o stress e a dirigir os seus recursos psicológicos da forma correcta para enfrentar com confiança este momento difícil, em que a COVID-19 está a perturbar radicalmente as nossas vidas individuais e colectivas. Além da normal prevenção que tem sido feita, o suporte psicológico é de primordial importância e tem falhado substituído pelo crescente alarmismo dos números de mortos, infectados e recuperados que a cada minuto a média fornece. A pandemia COVID-19 é um acontecimento que nos apanhou de surpresa nos últimos meses, mas não é a única emergência epidémica que a humanidade conheceu. Também noutros períodos históricos (durante a propagação de doenças infecciosas como a peste, varíola, gripe espanhola, asiática, Ébola, SARs, só para citar algumas…) o homem teve de enfrentar riscos e perigos que são substancialmente invisíveis aos seus olhos, mas extremamente agressivos. E é precisamente a invisibilidade do inimigo que pode desencadear em nós fortes reacções de ansiedade e medo e levar ao pânico, popularmente entendido como uma emoção de extremo medo e angústia. Nestes momentos, a nossa mente joga à defesa a fim de minimizar os riscos e obriga-nos a comportamentos que limitam a nossa capacidade de explorar, pondo-nos em espera até ficarmos imobilizados. Face a um perigo como a pandemia, será correcto ter medo? Uma das principais funções da nossa inteligência emocional é ajudar-nos como indivíduos e ao ser humano, como comunidade e espécie, a sobreviver. A bagagem das nossas emoções primárias é composta por uma emoção positiva, alegria; uma neutra, surpresa; e quatro negativas que são a raiva, medo, repugnância e tristeza. Assim, cerca de 67 por cento das nossas emoções primárias são negativas, porque o processo evolucionário seleccionou as emoções negativas como o melhor sistema de defesa para a nossa sobrevivência. Portanto, viver o medo, a raiva e a tristeza num momento perigoso como indivíduos e para a humanidade, é absolutamente natural. Nesta perspectiva, a sensação generalizada de medo e ansiedade, se por um lado cria desconforto, por outro, reforça a nossa capacidade de nos defendermos, estimulando a atenção, a cautela, tornando-nos mais reactivos. O medo e a ansiedade tornam-se assim amigos preciosos para pôr em prática todas as defesas e comportamentos necessários para superar o momento difícil. É de lembrar que ter medo e ansiedade perante o perigo é normal e útil. Uma das melhores estratégias que a nossa mente põe em prática, face a uma ameaça como o vírus, é identificar o mais possível o inimigo. Por esta razão, agarramo-nos às notícias, emissões de televisão e rádio, catapultamo-nos ansiosamente para o mar magnífico da Web, procurando notícias, sugestões, garantias, com o risco de sermos atraídos pelo que queremos ver e de cairmos num estado de confusão, esmagados pela incerteza devido aos montões de informação contraditórios. É pouco mais do que uma gripe trivial, é perigosa apenas para os idosos, tem uma taxa de mortalidade muito superior à da gripe, destruirá a economia, os cuidados de saúde entrarão em colapso, temos um dos sistemas de saúde mais válidos do mundo, ficamos em casa, trabalhamos, usamos máscaras, as máscaras não são tão úteis, e assim por diante. A confusão, a incerteza, a sensação de impotência assaltam-nos e invadem-nos cada vez mais, libertando ansiedades e medos que são acompanhados por comportamentos nem sempre realmente úteis, se não mesmo prejudiciais. Como podemos ter a quantidade certa de medo? A reacção emocional deve obviamente ser proporcional ao perigo que enfrentamos e a resposta é tanto mais apropriada quanto mais o perigo é conhecido. Ter informação clara, precisa e fácil de compreender é a chave para encontrar o nível certo de ansiedade, alerta, e medo. A responsabilidade pela comunicação adequada por parte dos órgãos institucionais e da imprensa é crucial, tal como a nossa capacidade de discriminar entre informação fidedigna e informação não verdadeira. Quando o perigo não está bem definido e a informação é inconsistente, então colocamo-nos no mais alto grau de ansiedade, alerta, e medo. É de lembrar que para se ter uma reacção de ansiedade e medo adequada, é essencial ter informação clara e correcta. Em situações de emergência, a informação desempenha um papel fundamental, porque nos permite activar correctamente as nossas defesas de forma mais apropriada. Face a qualquer perigo, só podemos escolher o comportamento ideal se tivermos uma ideia clara do “inimigo” que enfrentamos, e quando este é invisível, como no caso de infecções bacterianas e virais, torna-se ainda mais crucial poder escolher onde obter informações válidas. Muitas vezes estas fontes são os peritos na matéria, que têm as ferramentas para melhor ler a situação, como com uma espécie de lupa, e que nos fornecem dados e opiniões que nos ajudam a ter a melhor imagem possível da situação. Contudo, frequentemente nestas circunstâncias, os líderes de opinião e peritos parecem estar divididos em duas categorias distintas, o “tranquilizador” e o “catastrófico”. Pessoas de alto perfil e experientes discutem dados, medidas, experiência profissional e trazem diferentes pontos de vista. Então, porquê toda esta confusão? Porque é que os peritos e pessoas de reconhecida sabedoria dão tanta informação incoerente e opiniões muito diferentes ou mesmo opostas? A resposta reside no chamado “viés confirmatório” que, em resumo, não representa mais do que a tendência muito tenaz de se cingir aos seus pontos de vista de uma forma prejudicial. Mesmo os peritos, todos, estão à mercê deste limite. A expressão viés confirmatório (literalmente “tendência para confirmar”) define em psicologia um dos fenómenos mais humanos e frequentes em cada tempo e latitude. É um termo técnico, mas poderia simplesmente ser definido como preconceito, no seu significado mais comum de julgamento que é dado antes de conhecermos factos ou pessoas, e que condiciona o que vemos e o que ouvimos. Em suma, a nossa mente, através deste mecanismo, forma uma opinião sobre um assunto ou uma pessoa, baseada em crenças pessoais ou comummente aceites, após o que procura todas as notícias e informações que confirmam o seu pré-julgamento, tornando-se cega a tudo o que contrarie a sua ideia inicial. O preconceito confirmatório não tem consequências particularmente graves quando nos perguntamos se o mar ou as montanhas são melhores para a nossa saúde mental, mas pode levar-nos a comportamentos perigosos para nós e para os outros face a ameaças difíceis de identificar e não directamente observáveis. E como podemos abrir os olhos e desvendar as opiniões dos peritos? A resposta é simples e complexa, ao mesmo tempo. Para combater os nossos pré-julgamentos devemos deixar as opiniões em paz e confiar em factos, números e ser guiados na interpretação destes dados por fontes autorizadas e reconhecidas. Uma vez escolhidas as fontes que são respeitáveis, é essencial ouvi-las mesmo quando fazem declarações que nos parecem erradas, porque colidem com os nossos preconceitos. E se quiséssemos ser ainda mais eficazes contra o nosso preconceito de confirmação, deveríamos prestar mais atenção e procurar precisamente todos esses dados e informações e, porque não, as opiniões de fontes autorizadas e pessoas que contradizem as nossas crenças e pontos de vista, seguindo um princípio chave do método de pensamento científico desenvolvido por um dos grandes filósofos do século passado, Karl Popper, que é o princípio da falsificação das nossas hipóteses. No final deste caminho, depois de concordarmos em ouvir “realmente” aqueles dados e opiniões que não sentimos que sejam nossos, só então poderíamos tirar conclusões capazes de encapsular a complexidade das situações e que se aproximem da verdade. Quais são as fontes de informação mais fiáveis? Nunca como agora são demasiadas pessoas a expressar opiniões pessoais e que podem alimentar medos excessivos, bem como comportamentos exagerados (como encher o frigorífico com comida fresca). Na procura de informação, que actualmente depende demasiado facilmente da inclusão de palavras-chave em algum motor de busca, é essencial ter em mente uma escala de fiabilidade de fontes como Organização Mundial de Saúde, Centro Europeu de Controlo e Prevenção das Doenças e os departamentos nacionais responsáveis de cada país; peritos reconhecidos a nível internacional e nacional que exprimem frequentemente as suas opiniões pessoais com base na sua experiência e não em dados e para as restantes fontes de informação, a fiabilidade parece insuficiente para as considerar algo mais do que uma opinião pessoal. É de não esquecer que se deve ouvir apenas informação de fontes fiáveis. Que especialistas ouvir em caso da pandemia? Devem ser os peritos mais adequados para interpretar factos e dados são os epidemiologistas, infectologistas, imunologistas e virologistas. A experiência adequada em investigação científica fomenta o desenvolvimento de uma mente crítica apropriada que, embora não isente tais peritos de pré-julgamentos, pode ajudá-los a ter uma visão mais realista e completa do contexto. Neste sentido, o cientista especialista não decide mas tenta informar correctamente, traduzindo os dados em informação compreensível para não especialistas, ou seja, cidadãos e instituições, que em vez disso devem tomar as decisões mais adequadas, com base em informação mais próxima da verdade. É de lembrar que a fim de obter informações correctas, devemos recorrer a cientistas especializados que nos informem e nos ajudem a tomar as decisões mais adequadas. Melhores dados ou opiniões? As opiniões pessoais, mesmo de figuras de autoridade no campo médico-científico ou de pessoas respeitadas no mundo político, tendem a ser superficiais, se não forem apoiadas por uma interpretação correcta dos dados. Números, modelos matemáticos, previsões estatísticas são ferramentas úteis para melhorar as opiniões, torná-las mais fiáveis e úteis para esclarecer a verdadeira extensão de um perigo. É importante não dar demasiada importância às opiniões e ler os dados e factos tentando tomar a sua decisão. Qual deve ser o nosso comportamento face ao perigo de contágio? Quando somos confrontados com um perigo, não só activamos as nossas emoções negativas, como também activamos automaticamente três comportamentos defensivos que são a imobilização, luta e fuga. Face a um perigo grave e iminente, paralisamo-nos, na esperança de que o inimigo não nos veja. Quando pensamos que o perigo é demasiado grande para ser combatido, então fugimos; quando pensamos que temos a força para o enfrentar e ultrapassar, então lutamos. Estes comportamentos, como a história do desenvolvimento evolutivo do homem e dos seres vivos diz-nos, provaram ser os mais eficazes para a sobrevivência. É de recordar que estar zangado e triste com a pandemia é normal e deve ser aceite. Outro sentimento que nos acompanha durante a emergência pandémica é a perplexidade, a sensação de que o tempo parou. Esta novidade perturbadora e incerta, este sentimento de ser confrontado com um perigo real mas também não bem definido, a quebra dos nossos hábitos, a impossibilidade de planear o futuro próximo, desencadeia em todos nós, uma das reacções mais típicas do medo, a imobilização. Quando somos confrontados com um perigo, o nosso cérebro está predisposto a activar três mecanismos de defesa a luta, fuga ou imobilização. A luta é activada quando somos confrontados com um perigo que podemos vencer, que de alguma forma sabemos enquadrar e sentir que podemos vencer; a fuga é activada quando somos confrontados com um perigo conhecido e claramente superior às nossas forças. A imobilização, que é frequentemente a primeira reacção face a um perigo inesperado, está ligada precisamente à incerteza sobre o inimigo que temos de enfrentar e à impossibilidade de avaliar qual é a melhor estratégia, seja para lutar ou para fugir. A imobilização traduz-se em perplexidade, abrandando a sensação de tempo, incerteza e espera. Este estado de suspensão cria uma espécie de silêncio interior que nos permite aguçar os sentidos e a mente em busca da informação e das pistas que podem lançar luz sobre o perigo que temos de enfrentar, planeando a acção mais apropriada para activar, a luta ou a fuga. Tentamos compreender o que está a acontecer, quais são os riscos, qual é a força do inimigo que temos de enfrentar, quais são os nossos recursos, com quem podemos contar e, no caso específico da COVID-19, tentamos compreender como é transmitida, quem a pode transmitir, como nos podemos defender e prevenir da infecção, como as instituições nos podem ajudar, como fazer as compras correctamente, como trabalhar eficazmente no trabalho inteligente, e assim por diante. Há muitas perguntas que precisamos de fazer a nós próprios para termos uma imagem suficientemente clara que nos permita agir. Sentimo-nos “entre cores que estão suspensas”, nas palavras de Dante em O Inferno, e esperamos que a natureza, a ciência, os médicos e, porque não, também Deus, nos dêem a sensação de certeza e previsibilidade necessárias para voltar a planear o futuro e a agir.