Nair Cardoso, directora da Creche Internacional de São José: “O errado não existe na sala”

Apesar dos entraves colocados pelo IAS, a directora da nova Creche Internacional de São José (CISJ) está decidida a implementar uma filosofia pedagógica diferente, assente nas artes e na criatividade. Ainda com data de abertura incerta, o novo espaço vai admitir crianças que não tenham BIR

 

[dropcap]C[/dropcap]omo surgiu a ideia de criar a Creche Internacional de São José?

Não fiz parte do início do projecto e comecei apenas em Julho. O projecto nasceu mais ou menos em 2018, através da Universidade de São José (USJ), parte de uma vontade muito grande do padre Peter [Stiwell] de criar uma creche. Até porque existe uma aposta muito grande na área da educação na USJ, nomeadamente nos cursos de licenciatura, pós-graduação e mestrado em educação e agora também no doutoramento, frequentado por muitas pessoas. Portanto, haveria sempre uma grande aposta para se avançar com uma creche e eu penso que está aberta a porta para abrir um infantário, num futuro próximo. Com a saída do Peter Stilwell e a entrada do novo reitor, acharam que a creche precisava de mais apoios e então passou a ser da diocese. Isto calhou precisamente com a minha entrada na diocese. Vamos ter aqui voluntários que nos vão ajudar na área da psicologia e da educação e talvez possamos receber aqui alunos para fazer intercâmbios.

Como estão a correr os preparativos para a abertura? Já foi definida uma data?

Estamos a aguardar a decisão do Governo, como todas as outras escolas. Até Abril, a creche estava à espera de licença e em Abril conseguiu a licença do Instituto de Acção Social (IAS), que é uma fase bastante complexa e complicada. O IAS, que apoia totalmente esta creche, vem aqui inspeccionar o espaço e diz o que falta, ao nível dos equipamentos, o que é preciso comprar e a formação que as pessoas precisam de ter para ser contratadas. Quando cheguei já tínhamos todos os 22 funcionários contratados. O plano era abrir em Setembro. Para mim calhava bem porque esta fase, Julho e Agosto, é óptima para mudar pedagogias, coisas que a outra directora tinha em mente e que eu, como venho de uma escola internacional, vejo de forma diferente. Por isso, estou a implementar procedimentos alternativos, a formar pessoal e a mudar a disposição das salas. Criámos, inclusivamente, um atelier para apostar na arte. Venho com uma perspectiva diferente e tenho um sonho diferente para este espaço.


Como vai ser materializada essa pedagogia, assente na exploração de estímulos, na brincadeira e nas artes?

Quando recebi o desafio achei logo interessante. Venho de uma escola muito realizada que é a Escola Internacional de Macau (TIS). Trabalhei lá quatro anos, fui líder pedagógica num infantário, estava bem e sentia-me realizada. O desafio aqui é muito grande, porque deixei as crianças dos 4 e 5 anos, para trabalhar com crianças do 1 aos 3. Paralelamente, tenho um projecto dedicado a actividades extracurriculares, inspirado numa filosofia pedagógica totalmente diferente, chamada Regio Emilia, que é uma aposta que vai 100 por cento nesse sentido. Por isso, quando cheguei aqui pensei logo: vou implementar este sistema aqui na creche. No entanto, não é possível devido aos protocolos que o IAS nos exige, nomeadamente, quanto à utilização de materiais reciclados, que não podem ser usados, pelo facto de as crianças ainda serem muito pequenas e poderem ter alergias, por exemplo, com as tintas que queremos usar. Por isso, agora estou a pensar como vou implementar este sonho, que é o de implementar pedagogias alternativas e não tão tradicionais numa creche, pensando sempre na segurança das crianças. Então, decidimos apostar nas artes, porque é importante que as crianças explorem os sentidos e não há nada melhor do que a arte para o fazer. Ainda para mais, o meu mestrado e doutoramento são focados na pedagogia dos sentidos. Através deles é possível ensinar outras coisas que as crianças têm de aprender, como socializar e discutir umas com as outras. Isso tudo é importante e possível de desenvolver através da arte, para que as crianças não estejam sentadas no seu lugar. Aliás, nós não queremos crianças sentadinhas o tempo todo. Elas precisam de mexer, têm que mexer e precisam de mexer para saber o que aprender a seguir. É essa mudança de mentalidades que quero implementar aqui na creche.

Como é que essa filosofia pedagógica vai ser adaptada para funcionar de acordo com as regras do IAS?

O IAS tem 12 volumes de manuais pedagógicos que têm de ser implementados na creche, mas só existem em chinês. Sei falar fluentemente mandarim, mas não sei ler. Tive várias reuniões com o IAS e essa tem sido a minha luta. Vou dar o exemplo da música. As crianças têm de tocar um ritmo padrão e eu pergunto: o que é que as crianças de 1 ano vão entender com isso e porque é que a música tem de ser aprendida com uma pandeireta seguindo um determinado padrão? Porque é que não podemos colocar uma música a dar, deixando as crianças pintarem e explorarem, enquanto dançam e se sujam, tudo ao menos tempo? O IAS diz que, não é que não possa ser feito assim, mas, no entanto, é preciso ter em atenção a regra que fala da alergia dos materiais. Pensei então na filosofia da reciclagem do Regio Emilia e, por isso, estamos a testar usar as sobras das cascas das cenouras e das couves, para fazer tintas com a comida. Por isso, estamos nesta fase de experimentação e a ver o que é possível ou não fazer, sem que as crianças não têm a preocupação do certo e do errado. O errado não existe na sala.

Como se retira essa preocupação do que é certo e errado?

Por exemplo, e sem querer ferir susceptibilidades de outras escolas, eu não concordo com o puzzle. Não quer dizer que esteja errado e outras pessoas não possam educar as crianças de outra forma, mas só há uma maneira para encaixar um puzzle, não há criatividade nenhuma. Até podem estar a desenvolver, talvez, a coordenação motora, mas, para mim, é preferível, pôr uma série de blocos à frente dos miúdos para eles montarem o que quiserem. Cada peça pode ser, sei lá, uma nave espacial, um boneco ou o pai e a mãe. Chamamos a isso “open ended materials”, que é o que eu pretendo aos poucos colocar nas salas. Não há certo ou errado nesta idade. Nesta fase, as crianças têm de explorar os sentidos, ser felizes e alegres. O maior desafio para uma criança do 1 aos 3 anos é a separação. Claro que vão existir regras, não vamos montar aqui uma selva, mas de uma forma em que as crianças não são frustradas. Não há stress aqui. Os pais se quiserem deixar os filhos dentro da sala podem deixar. Se quiserem ficar um pouco dentro da sala de aula também podem. Vou tentar criar um ambiente o mais parecido possível com o sítio de onde vêm.

Podemos estar a passar ao lado de muitos talentos, só porque não abrimos as “portas certas” às crianças ou assumimos, à partida, um determinado caminho?

Infelizmente, as creches são regidas pelo IAS e, a meu ver, elas deveriam ser integradas na Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). A pergunta que eu faço a Macau é: porque é que as creches têm de ser vistas como uma componente social? Ou seja, em Macau as creches fazem parte do trabalho comunitário social que se oferece aos pais para tomar conta das crianças enquanto trabalham. Contudo, do 1 aos 3 anos já existem muitas potencialidades, as crianças podem brincar com arte, explorar a música, dançar, já sabem comer sozinhas. Não são seres que precisam de um adulto a monitorizá-los a toda a hora, todos os seus movimentos. Além disso, as creches oferecem um horário muito extenso, porque há pais, aqui em Macau, que trabalham por turnos e eu concordo com isso. No entanto, acho que deviam saber se os pais precisam mesmo deste serviço, porque as crianças não podem estar oito horas nas escolas. Aqui abrimos às 8h e fechamos às 20h, de segunda a sábado. É importante que as crianças estejam com os pais, irmãos, avós.

Qual a importância de apostar na multiculturalidade numa cidade como Macau?

A aposta na arte é a melhor linguagem, por isso é que também se apostou nessa área. Queremos implementar as línguas oficias de Macau aqui na creche. Infelizmente, a equipa, neste momento, não poderá ajudar tanto na utilização do português e do inglês nas salas e será mais o cantonês e o mandarim. Mas, a linguagem vem aos poucos e tanto as crianças vão poder ajudar os professores, como o contrário também é verdade. Os alunos estão aqui para ajudar e há uma ligação com o ambiente, em que ele próprio é também um “professor”, segundo a pedagogia que queremos aplicar. O professor está na sala, mas crianças também vão ensinar umas às outras. Nada melhor do que as crianças falarem a sua própria língua umas com as outras. Nunca vai haver a situação de “agora só vamos falar chinês” ou “agora é hora do inglês” e a multiculturalidade vem por aí. Porque em Macau, nós vemos miúdos a falar inglês, português, chinês, mandarim, vietnamita, tailandês e é precisamente essa a nossa aposta. As crianças podem falar a língua que usam em casa e daí poder influenciar os outros e todos poderem aprender.

Os não residentes também podem ser admitidos na creche?

Nesta fase, não temos nenhuma objecção do IAS para termos algumas vagas para crianças que não tenham BIR e isso foi o primeiro pedido que fiz. Eles disseram que dependendo da creche podemos atribuir um número para não residentes e acho que isso é importante, porque, às vezes, é um desespero os pais que detêm bluecard não terem escolas para os filhos. Ainda não sei o número definido, mas vamos ter uma quota para crianças que não têm BIR. As que têm BIR as propinas são equiparadas a todas as escolas do IAS, ou seja, 2.500 patacas mensais, o dia todo, já incluindo refeições. O preço é o de uma escola pública e o serviço é equiparado a uma escola privada.

Quais os objectivos de ocupação neste primeiro ano lectivo?

Com a licença que temos, podemos ter no máximo 240 crianças com as oito salas a funcionar. No entanto, numa primeira fase, vamos tentar restringir-nos, no máximo a 120, porque o número de pessoal que temos actualmente só dá para funcionar cinco salas. Para já, o objectivo é receber entre 80 e 90 crianças em quatro salas. Isto porque é preciso adaptação a uma nova filosofia de ensino e pedagogia, até porque temos de ganhar a confiança dos pais. Somos novos. Não é como uma creche que está aberta há 10 ou 11 anos na qual os pais confiam de olhos fechados. Os pais têm muito receio das doenças transmitidas nas salas e das intoxicações alimentares e essa é outra preocupação. Por isso estamos a dar formação ao pessoal sobre a maneira como se desinfecta os brinquedos e as salas. Estamos também a testar o menu que a cozinha está a preparar.

Está preocupada com o efeito que a pandemia pode ter no dia a dia da creche?

Na verdade, a pandemia até me vai ajudar, porque os pais já educaram as crianças nesse sentido e elas já sabem desinfectar as mãos, lavar as mãos várias vezes, usar a máscara e manter alguma distância das outras crianças. Isso ajudou, porque desde Fevereiro que estamos nesta situação e as crianças tiveram mais do que tempo para se adaptar e os pais também estão mais mentalizados para isso.

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