Covid-19 | Enquanto se debate a acessibilidade da vacina, especulação bolsista gera biliões

Entre farmacêuticas que negam a intenção de lucrar com a vacina contra a covid-19 e dúvidas quanto à base de custos, pequenas empresas e laboratórios que procuram a tão aguardada inoculação tornam-se estrelas do mercado bolsista. O mundo aguarda a vacina e o número de infecções sobe em flecha, quase à mesma velocidade dos lucros dos executivos de topo das empresas do sector

 

[dropcap]A[/dropcap]s leis não escritas dos mercados estão de novo a trocar as prioridades de governos e povos. Os números de novas infecções de covid-19 continuam a subir vertiginosamente, à medida que, um pouco por todo o mundo, se intensificam esforços para encontrar a tão desejada vacina, que restitua a normalidade ao mundo de pernas para o ar.

Pelo meio, muito dinheiro é feito na bolsa, com os Estados Unidos a encabeçar a capitalização da ciência nos mercados bolsitas, mas empresas chinesas não ficam atrás no lucro das subidas vertiginosas de acções.
Antes da análise ao valor das empresas, o futuro custo da própria vacina ainda está envolto em mistério, sem certezas de vir ser acessível às populações.

Na semana passada, representantes das farmacêuticas Moderna Inc e Merck & Co foram ouvidos no Congresso norte-americano para apresentar uma estimativa quanto ao lucro que esperam obter assim que for aprovada uma vacina contra a covid-19.

A representante da Merck, Julie Gerberding, expressou incerteza quanto à possibilidade de a vacina ser acessível a todos. “Não iremos vender a nossa vacina a um preço elevado, mas ainda é prematuro dizê-lo, porque estamos longe de compreender as bases do custo produtivo”, referiu em audiência, citada pela agência Reuters. A Merck ainda não começou a fazer testes em humanos, o que a coloca uns passos atrás de outros candidatos na corrida científica.

Directores executivos da Johnson & Johnson e da AstraZeneca declararam que vão colocar o preço a um nível que coloca de parte o lucro, enquanto a pandemia estiver em expansão.

Na mesma audiência perante congressistas, enquanto os representantes da Merck e da Moderna não admitiram os preços que têm em mente, a Pfizer mostrou intenção de lucrar se a sua vacina for aprovada. Convém referir que, ao contrário da Moderna e da AstraZeneca, a Pfizer não recebeu fundos públicos para desenvolver uma vacina.

Apenas dois dias depois da audiência, segundo o The Washington Post, a Pfizer e uma empresa de biotecnologia alemã de nome BioNTech assinaram um acordo com o Governo norte-americano para a entrega de 100 milhões de doses a troco de 1,95 mil milhões de dólares, o maior investimento da Casa Branca num produto ainda não aprovado.

O Governo norte-americano tem ainda opção para comprar mais 500 milhões de doses. Estes acordos podem conduzir à compra da larga maioria das vacinas que a Pfizer planeia fazer até ao fim de 2021, às quais se acrescenta a compra de 300 milhões de doses da AstraZeneca e 100 milhões da Novavax.

Em declarações ao The Washington Post, o presidente do Centro para a Ciência e Interesse Público, Peter Lurie, alertou para a possibilidade destes negócios aumentarem o risco de exclusão de populações de países em desenvolvimento. “Basicamente, alguns países mais ricos estão a arrebatar as empresas candidatas a conseguir uma vacina. Isto pode colocar de parte populações, que enfrentam maiores riscos face à pandemia, que assim ficam desprotegidas.”

A grande farra

Em Wuhan, onde começou a pandemia, os testes para a vacina Ad5 vão na segunda fase de testes aleatórios num estudo com placebo-controlado. Para já, os resultados são animadores, com a maioria dos participantes a adquirir imunização.

De acordo com o Diário do Povo, as injecções começaram a ser ministradas a meio de Abril. As “cobaias” foram adultos com mais de 18 anos que nunca testaram positivo à covid-19. Os 603 voluntários foram aleatoriamente escolhidos para tomar diferentes doses da vacina ou um placebo, sem nunca lhes ser comunicado o que haviam tomado.

Citado pelo Diário do Povo, Fengcai Zhu, do Centro de Prevenção e Controlo de Doenças da província de Jiangsu, mostrou-se optimista com o avanço. “A segunda fase dos testes acrescenta provas da segurança e imunogenicidade numa amostra populacional maior do que a da primeira fase”, revela o investigador que trabalha já na terceira fase.

Os avanços e a potencialidade da vacina produzida pela Cansino Biologics levaram à febre bolsista, com as acções da empresa chinesa a subirem 1.74 por cento na semana passada, quando foram divulgados os resultados dos testes. Numa análise comparada ao ano, as acções da Cansino Biologics subiram 183 por cento, impulsionadas pelas investigações à covid-19.

O caso da Cansino Biologics está longe de ser único, ou de exemplificar o cúmulo da ganância. Através do espectro das indústrias médica e farmacêutica, executivos de topo e membros da administração estão a capitalizar em força com a corrida à vacina.

Sempre que são feitos anúncios de progressos conquistados, incluindo financiamento público, são feitos milhões nas bolsas.

O The New York Times noticiou este fim-de-semana que, depois dos anúncios de progressos científicos, executivos de, pelo menos, 11 empresas, algumas de pequenas dimensões, venderam acções num valor que ultrapassou os mil milhões de dólares desde Março.

Alguns “insiders” estão a lucrar com compensações que já estavam calendarizadas ou com trocas automáticas de acções, mas, em muitas situações, executivos de topo aproveitam a subida vertiginosa do valor das acções das suas empresas para arrecadar lucros milionários. Aliás, existem casos em que foram atribuídas opções de compra de acções momentos antes de anúncios sobre progressos científicos que levariam a grandes valorizações.

Velocidade Warp

Algumas destas empresas são de pequena dimensão e muitas vezes a sua sobrevivência depende do desenvolvimento bem-sucedido de apenas um fármaco.

A Vaxart, sediada no Sul de São Francisco, na Califórnia, é um bom exemplo do esquema milionário que surge, à semelhança de outros casos, com um anúncio aparentemente inesperado. A empresa anunciou que a vacina contra a covid-19 em que está a trabalhar foi seleccionada para o programa do Governo norte-americano “Operation Warp Speed”, que financia projectos para chegar o mais rapidamente possível à inoculação.

O anúncio levou à subida galopante das acções da Vaxart, cujos executivos, semanas antes, tinham recebido opções de compra de acções cujo valor cresceu para seis vezes mais. O The New York Times avança que um fundo de investimento que controla parcialmente a Vaxart ganhou automaticamente mais de 200 milhões de dólares.

Várias empresas estão a atrair o escrutínio do Governo e das autoridades reguladoras por usarem a Operação Warp Speed como esquema de marketing. O diário nova-iorquino exemplifica com o título do comunicado de imprensa de São Francisco: “A vacina contra a covid-19 da Vaxart foi seleccionada pelo Governo norte-americano para a Operação Warp Speed”.

Porém, a realidade é mais complexa do que aparenta o comunicado da empresa. A vacina da Vaxart foi aceite como candidata para testes em primatas organizados por uma agência federal, em conjunto com a Operação Warp Speed. Mas a empresa não está entre as seleccionadas para receber o financiamento prestado pelo programa para a produção em massa de vacinas.

Também ainda não é conhecida qualquer investigação das autoridades que fiscalizam os mercados bolsitas, nomeadamente por conhecimento interno que desvirtua a concorrência.

Alto grau de contágio

Ouvido pelo The New York Times, Ben Wakana, director da ONG a favor de medicação a preços acessíveis, sublinhou ser “inapropriado os executivos de empresas farmacêuticas lucrarem com uma crise”. “Todos os dias, acordamos e fazemos sacrifícios durante esta pandemia. As empresas farmacêuticas encaram isto como uma oportunidade para lucrar”, rematou ao diário.

É longa a lista de executivos que acumularam lucros na ordem dos sete e oito dígitos graças à busca pela vacina e formas de tratamento para a covid-19.

As acções da Regeneron, uma empresa de biotecnologia de Nova Iorque, subiram quase 80 por cento desde Fevereiro, quando anunciaram a colaboração com o Governo federal na busca por tratamento. Desde então, os executivos no topo da hierarquia empresarial, e membros do conselho de administração, venderam quase 700 milhões de dólares em acções. O CEO, Leonard Schleifer, ganhou num dia apenas 178 milhões de dólares no passado mês de Maio.

Em todo o mundo, estão a ser investigadas e desenvolvidas mais de 150 vacinas contra o novo tipo de coronavírus, com duas dúzias já a ser testadas em humanos. O objectivo de encontrar uma forma que garanta a segurança e saúde de milhares de milhões de pessoas afectadas pela pandemia é todos os dias minado pela ganância de poucos, em detrimento de muitos.

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