Voltarei a fotografar com os teus olhos

[dropcap]A[/dropcap] Maria Beatriz Matias era uma mulher do mundo. Grande pintora e pessoa de colheitas raras. Adorava perseguir o voo das gaivotas no Vondelpark de Amesterdão. Conhecia-lhes os traçados, decifrava-lhes os abecedários, presumia-lhes os grandes círculos no ar.

Sempre que eu subia àquele terceiro andar da Wilhelminastraat, havia uma tela com mulheres e asas, muitas asas vermelhas em processo de construção e colagem. E chá, muito chá. E pessoas adoráveis que tive a sorte de conhecer. Raramente era inverno, porque ela guardava as folhas prateadas dos plátanos e afirmava que lhe congelavam o tempo em segredo. Junto à varanda, a corda e o cesto resistiam em estado de prontidão à Chagall, pois, caso houvesse incêndio, a Beatriz entregar-se-ia acrobaticamente às nuvens.

Na vida nada é comedido. Mais cedo ou mais tarde todos os rios acabam por transbordar.
Com a Maria Beatriz Matias, aprendi duas coisas fundamentais e só hoje me dou conta disso. Primeiro: a verdadeira família não é a que herdamos geneticamente, mas sim a outra – ou as outras – que vamos construindo ao longo do tempo. Segundo: não é por se ter nascido e crescido na mesma terra e falar a mesma língua que somos obrigados a viver para sempre dentro de um mesmo aquário, a maior parte das vezes turvo e opaco. O mundo a sério é sempre do outro lado. Seja do outro lado da família, seja do outro lado dos cheiros da infância. Sempre pratiquei intuitivamente estes dois princípios, mas foi ela quem me deu a ver como eles brilhavam, de facto, no meio do universo. Jaromil, protagonista de ‘La vie est ailleurs’, romance de Kundera com título tomado a Rimbaud que saiu a público em 1969 (e que a Beatriz tantas vezes citava), sabia bem que assim era.

Vimos lado a lado o Astor Piazzolla em Utreque. E o que ela riu das palavras iniciais do concerto: “Quando comecei a compor, ninguém no meu país entendeu o que eu fazia. E hoje ninguém no meu país ainda entende o que eu faço. É essa a minha alegria”.

A Beatriz sabia de cor ‘Le bateau Espagnol’ do Léo Ferré, cantava-o com xailes negros e depois voltava a rir como quem depena a angústia até poder agarrá-la pelas vísceras e atirá-la para dentro do canal. E rir-se-ia ainda mais ao ver o animal a ir ao fundo naquela água verde, suja, cheia de objectos e histórias que tanto a fascinavam.

Visitei com a Beatriz a casa onde John Ruskin viveu em Veneza. Ficava mesmo em frente à ilha de San Giorgio Maggiore. Num repente, vi-a a saltar para o parapeito de uma das janelas e confessou-me que lhe apetecia morrer ali. Seria muito sincero esse seu desejo, mas ela na verdade auscultava patamares mais vastos do que a simples vertigem momentânea. Uma vez, em casa do José Barrias, em Milão, disse para quem a quis ouvir que não se importava nada de desaparecer, desde que ficasse para sempre a voar. E ria sempre do que dizia. A Beatriz morreu a rir.

Temos um livro pronto a sair a público há mais de três décadas, intitulado ‘As Muitas Manhãs’ (era, também, uma homenagem a Almada Negreiros e às suas “quatro manhãs”). Os desenhos da Beatriz acamparam nessa altura ao lado de um punhado de poemas meus, traduzidos pela Catherine Barel, que mantenho ainda comigo. Não sairá jamais a público, pois há verdades que não se editam.

Tinhas toda a razão, Beatriz, quando dizias que é um crime escrever e ler diante da rebentação das ondas.

Fiquei tão triste com a notícia da tua morte, Beatriz. Sim: morte. Detestas como eu que se diga que alguém partiu. Ninguém parte para sempre, afinal. Continuaremos em Bruges de volta das enguias com natas ou no ‘Trou Noire’, em Paris, no meio daquelas performances e instalações que o nosso querido José M. Rodrigues quis que fossem da cor do vinho tinto e não da água. A invisibilidade é uma anestesia perigosa, sabemo-lo bem.

No dia em que eu quebrei umas quantas costelas – tu sabias que a bicicleta andava azarada – fizeste de propósito aquele desenho em que um touro se transformava em pedra. Mas era uma pedra-menina com folhos de saia de onde caíam duas ou três penas da cor do sangue. A alegoria esgotou-se na altura, mas flutuou ao jeito dos zepelins até ao dia em que te estou aqui desastradamente a escrever. Na realidade, todo o choque, todo o embate, toda a batida – mesmo a do mar de Zandvoort em Janeiro – é um recomeço.

Hoje voltarei a fotografar com os teus olhos. E regressarei certamente a esse afinco de liberdade que era a visão mais íntima e verdadeira de Jaromil. Juro que tentarei regressar todos os dias à abertura do mundo, enclausurando no escuro a pequenez de que tu também fugiste.

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Carlos Marques
Carlos Marques
24 Jul 2020 02:55

Sai’ de Amsterdam in 1972 (cheguei la‘ em 69) por isso penso que os nossos trilhos, os meus e os da Beatriz, nunca se intersectaram. Gostava de a ter conhecido.